No modelo tradicional de Estado com três poderes, criado durante o Iluminismo, o menos democrático é o Judiciário. Um dos motivos é óbvio: salvo no caso de alguns tipos especiais de juízes nos países escandinavos, e salvo também para algumas poucas comarcas nos Estados Unidos, e para os países da Suíça e do Japão, os magistrados não são eleitos por voto popular.
Outro motivo mais substancial para o autoritarismo do poder judiciário é a relação entre a ideia de punição (e não de justiça num sentido amplo) é a noção teológica de culpa, especialmente cruenta e irracional nas religiões monoteístas. Finalmente, um peso importante para o caráter conservador do Judiciário provém de sua índole hermética, que o tornava acessível, até meados do século 20, apenas aos membros das famílias poderosas e abastadas.
Se a Justiça é arbitrária mesmo em países com notável desenvolvimento humano (como o prova a tentativa de extradição de Roman Polanski na Suíça, e o empenho da Suécia em processar Julian Assange), a situação é muito pior nos países ditos “emergentes”, mais ainda se estes possuem uma estratificação social dramaticamente desigual, e pior ainda se sofrem de um especial desvio ideológico herdado de um sistema escravocrata que só foi eliminado formalmente por pressão externa.
O Brasil é uma dos poucos países onde a magistratura possui uma força desmesurada em relação com outros poderes. Essa força se reflete em assuntos relativamente secundários, mas também em aspectos vitais da sociedade, como a capacidade de estimular a vingança social. É verdade que nem todo o Judiciário é homogêneo, mas a tendência à truculência de alguns tribunais é conhecida pelas organizações de direitos humanos de todo Ocidente, como, por exemplo, no caso de Tribunal de Justiça de São Paulo.
Até falou-se da “ditadura do Judiciário”, como é chamada por um ilustre membro do tribunal, Marco Aurélio de Mello. No entanto, por razões peculiares do Brasil, a Suprema Corte (o STF) teve, em alguns períodos, um grau maior de transparência que outros tribunais e juízes monocráticos. Entretanto, nos últimos tempos, as coisas desandaram e o STF assumiu, na maioria dos assuntos de repercussão geral, posições não já injustas, mas diretamente inquisitoriais e draconianas, como no caso do aborto de fetos anencefálicos, nas incríveis dúvidas para julgar a lei sobre as células-tronco, a obstrução à solução dos problemas indígenas, a bizarra violação da liberdade de consciência por meio dos gigantescos crucifixos afixados nos edifícios públicos… para não falar novamente do caso Battisti.
Acho importante deixar claro que o acórdão do STF que protege sob a lei de Anistia os crimes contra humanidade da ditadura militar, apesar de ser uma decisão extremamente nociva jurídica, social, política e eticamente, entretanto, pode explicar-se em alguns casos por razões psicológicas. É sintomático que Eros Grau, que fora vítima da ditadura, e que Marco Aurélio, que confessou ter amigos desaparecidos, também optaram por aquele ato de “virar a página”.
Certamente, do ponto de vista da justiça, essa decisão foi uma das piores da história do tribunal, porém, alguns votos contrários à ação da OAB (não mais de quatro) talvez tivessem como principal causa a fragilidade psicológica de seus autores, e não um sentimento favorável aos genocidas.
Entretanto, parece existir uma esperança de que haja uma nova época de equidade na alta corte. De fato, a última crise do STF começou no final do governo de FHC, com duas nomeações tendenciosas em 2000 e 2002. O presidente Lula, embora tivesse três acertos entre suas oito propostas, contribuiu para um renascimento da inquisição. A indicação de Menezes Direito em 2007 foi criticada até por setores medianamente conservadores do Judiciário, e a de Cezar Peluso em 2003 não parece explicável por nenhum critério razoável.
Mas a composição da corte está mudando. A ministra Ellen Gracie aposentou-se, Peluso deverá aposentar-se pela compulsória, e o célebre crítico dos “clubes recreativos de poesia” ficará sozinho. Paralelamente, Luiz Fux demonstrou ser uma personalidade nada convencional, independente e com extremo senso crítico, como o prova seu magnífico acórdão sobre a extradição 1085.
Agora, se incorpora ao tribunal Rosa Maria Weber, cujo histórico parece estimulante, já que é considerada defensora das minorias e dos direitos sociais. Esse perfil (se for confirmado na prática) contribuirá a uma mudança num colegiado que, durante os últimos anos, só teve uns poucos ministros com senso de justiça, e uma maioria movida por critérios desconhecidos, arbitrários, que, em alguns casos, devolveram à dita “ciência” do direito aos porões mentais do século 13. Em particular, tudo indica que a ministra Rosa seja uma propulsora das ações afirmativas, um aspecto no qual Brasil está atrasado em quase 50 anos, inclusive depois da Índia e da África.
Tendo em conta o enorme poder do Judiciário no Brasil, a nomeação dos dois últimos ministros, junto com as saídas próximas (passadas e futuras), oferece uma expectativa de humanização a uma sociedade cuja elite se caracteriza pelo mais rudimentar darwinismo.