Marcos Leôncio Sousa Ribeiro*
“Bate, espanca, quebra o osso. Bate até morrer”, estariam entoando militares do 1º Batalhão da Polícia do Exército em treinamento nas ruas do Rio de Janeiro. O recente episódio, negado pelo Ministério da Defesa, mas amplamente divulgado na imprensa, nos faz refletir sobre qual modelo de segurança cidadã o Brasil deseja sedimentar nos próximos anos para atuar nos grandes eventos. Um exemplo calçado no fortalecimento dos órgãos de segurança ou sedimentado na atuação invasiva das Forças Armadas? A última opção, que volta e meia se descortina no discurso do governo, é um modelo que não deixa legado e, ainda por cima, expõe negativamente a imagem do Brasil perante as demais grandes nações.
O governo anunciou que investirá R$ 1,17 bilhão com segurança na Copa de 2014. O projeto previa a instalação de centros de comando e controle nas 12 cidades que receberão o Mundial no Brasil. Inicialmente, os recursos seriam gerenciados pela Secretaria Extraordinária de Segurança de Grandes Eventos, criada no âmbito do Ministério da Justiça com o intuito de promover a integração das forças policiais. Além disso, a secretaria criaria padrões de atendimento e treinamento para deixar ao país um “legado de segurança”, tanto do ponto de vista tecnológico, quanto de infraestrutura e capacitação. Entretanto, ante o volume de recursos envolvidos, eis que surge um novo ator cobiçando uma enorme fatia do bolo: as Forças Armadas.
O problema é que o Ministério da Defesa elabora um planejamento para responder às demandas de segurança de um evento específico. Finda a missão, levanta acampamento e vai embora. Não fica nada para trás. Não há uma melhoria na segurança pública no pós-evento. Os investimentos ficam aquartelados. Nada é revertido para a sociedade. Os veículos utilizados não servirão depois para o policiamento; nem os equipamentos, no combate à criminalidade.
Quem acompanhou a Eco-92, os Jogos Mundiais Militares e a Rio+20 sabe que os recursos aplicados não ficaram no Rio de Janeiro. As Polícias Estaduais, Corpo de Bombeiro, Defesa Civil, Órgãos de Trânsito, Guardas Municipais e as Polícias Federais embora tenham executado os trabalhos foram simplesmente preteridos pelos supostos “coordenadores do trabalho alheio”. Os recursos foram abocanhados pela Defesa e pelo Itamaraty. Uma semana depois da conferência, a população carioca já reclamava pelo desmonte do aparato de segurança do evento. Não ficou legado algum.
Com o Ministério da Defesa na coordenação, há uma integração pontual, apenas para o evento. Entretanto, sua atuação não deixa esse legado que a população tanto anseia. Já sob o comando da Secretaria Extraordinária de Segurança de Grandes Eventos seriam estipulados protocolos de atuação entre as diversas instituições de segurança pública para funcionar não apenas durante os eventos, mas em prol da segurança pública no dia-a-dia após os eventos.
A perda de recursos pelos órgãos de segurança pública é outro problema gerado pela intromissão da Defesa. Enquanto a Secretaria Extraordinária de Segurança de Grandes Eventos estava à frente da coordenação da Rio+20, a Polícia Federal iria receber recursos na ordem de R$ 28 milhões para compra de lanchas, helicópteros, viaturas, equipamentos para o evento e, principalmente, para uso no combate às drogas e ao crime organizado no Rio de Janeiro, após a Rio +20.
Depois que o Ministério da Defesa assumiu o comando, os recursos encolheram 50% e se resumiram ao custeio dos policiais federais recrutados. A diferença foi destinada ao Exército, Aeronáutica e Marinha que, juntos, abocanharam mais de R$ 40 milhões para a Conferência. Ou seja, foram R$ 14 milhões que deixaram de ser investido na Polícia Federal que, após o evento, continuaria beneficiando as operações da instituição, responsável pelo combate ao desvio de recursos públicos e à corrupção.
O combate aos crimes cibernéticos é outro exemplo dessa disparidade. O Centro de Defesa Cibernética do Exército teria recebido R$ 80 milhões para atuar nos grandes eventos. Entretanto, essa atuação será pontual. O Exército tem a missão de proteger apenas algumas estruturas cibernéticas dos próprios militares. Enquanto isso, a Polícia Federal que, por meio de seu Centro de Segurança Cibernética, tem a responsabilidade de monitorar as mais variadas ameaças cibernéticas, a missão de proteger as redes do governo e reagir aos mais de dois mil ataques de hackers que estas redes sofrem por hora, hoje tem disponíveis meros R$ 500 mil para a área.
Para além do legado que se espera, são as polícias que têm experiência e maturidade para atuar no ambiente urbano. Será que todos aqueles soldados chamados para atuar na Rio+20, com fuzis na mão, em vias públicas, estavam de fato preparados para responder no caso de um distúrbio civil? E essa resposta seria adequada e proporcional, ou iria culminar com uma crise pelo mau uso de uma arma de guerra num ambiente urbano? Não dá para contar sempre com a sorte de que nada vai acontecer. Ademais, mesmo para profissionais de segurança, a presença ostensiva de carros militares e soldados empunhando fuzis não era uma visão agradável de ver na orla de Copacabana, no Rio de Janeiro.
Para quem se propõe a coordenar e integrar esforços, na Rio+20 as Forças Armadas foram responsáveis por uma prática abominável: uma espécie de bullying institucional. Em vez de buscar o diálogo e o entrosamento entre as forças policiais, os ínfimos incidentes eram relatados diretamente à Casa Civil, sem antes passar pelas instâncias específicas dentro das próprias instituições responsáveis. Muitos problemas detectados, inclusive, eram falsos ou impertinentes, mas foram usados como forma de desmoralizar ou mitigar a atuação das forças policiais.
A grande questão é: que imagem o Brasil quer mostrar para o mundo? Dentro de uma normalidade democrática, um país que deseja ser referência mundial sinaliza muito mal com o emprego das Forças Armadas em substituição aos órgãos regulares de segurança pública. Isso é algo impensável nas nações mais desenvolvidas e indesejado pelas organizações internacionais que promovem a Copa e a Olimpíada.
É preciso atenção ao movimento que as Forças Armadas estão realizando nos bastidores da República para assumir a coordenação da segurança pública nos próximos grandes eventos. Esse modelo traz consigo o risco de não deixar legado aos órgãos de segurança pública. Para os trabalhadores de segurança pública é uma sinalização de que o governo não confia no trabalho das instituições que atuam no dia-a-dia, levando a um esvaziamento de atribuições e orçamentário dessas forças. Para a sociedade, cabe uma reflexão acerca do modelo que deseja: civil como base para um Sistema Único de Segurança Cidadã ou militar sem nenhum legado. Os romanos antigos já ensinavam que, em favor da República, ao Exército era proibido entrar em Roma.
*Presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) e membro do Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp)