Artionka Capiberibe*
Só uma vez na vida escrevi sobre minha relação com a ditadura militar. Foi numa disciplina do curso de História da Unicamp, na minha graduação em Ciências Sociais. Fiz isso cumprindo uma tarefa na qual cada aluno devia escrever sua autobiografia. Após corrigir os textos, a professora separou dois para lê-los em voz alta, um deles era uma relato de alguém de Brasília no qual se via claramente a cidade, o outro era o meu. Fiquei muito envergonhada, fazia um grande esforço para que não me notassem (algo que se explica por ser filha de figuras públicas, e essa é outra história), mas principalmente porque pensava que a história que havia relatado não era inteiramente minha, não fora eu a protagonista dos atos que me obrigaram a perambular mundo afora e conhecer o Brasil apenas aos nove anos de idade. Nas leituras daquele curso aprendi como a História é feita da memória, da memória de pessoas, simples mortais, como eu. Ao expor minha vida no texto e ao vê-lo lido e comentado pela professora entendi finalmente que aquela história era minha, e não somente minha, mas de todos, parte da História do Brasil, por isso fora lida.
Esta é também especificamente a história de uma geração, que envolve aqueles que se engajaram diretamente na luta para mudar uma sociedade injusta e desigual, assim como seus amigos e parentes, pais e filhos que sofreram por suas prisões, torturas, exílios e mortes e que sofrem até hoje pelos desaparecidos e pela impunidade dos carrascos. O silêncio a respeito dos porões da ditadura é um preço demasiado alto para que se diga que houve um acerto justo a partir da Lei da Anistia.
A Anistia, aliás, é a cara do Brasil, ou melhor, de um Brasil cínico, de um Brasil que faz de conta que nestas plagas não existe racismo e sim “democracia racial”, mas que dá tratamento diferenciado aos negros nos espaços públicos; que as mulheres têm os mesmos direitos e ocupam os mesmos espaços que os homens, desconsiderando que no setor privado elas continuam ganhando menos, trabalhando nas mesmas funções que os homens, e no Congresso são a franca minoria; que o Brasil é grande e por isso pode-se fazer um desenvolvimento predador em escala industrial e pensar o contrário disto é viver numa “fantasia” (pessoas contrárias a hidrelétricas na Amazônia vivem na fantasia, diz Dilma). Então, dá-lhe soja e gado derrubando a floresta Amazônica, hidrelétricas interferindo em cursos de rios, na fauna, na flora e na vida de populações ribeirinhas e indígenas. Contudo, as mudanças climáticas que vêm a reboque indicam um cenário de futuro incerto para a humanidade e as mortes de lideranças populares e indígenas estão aí para provar que o Brasil é grande, mas sua ocupação é diversificada, não dá para colocar o dedo no mapa e passar o trator por cima.
Desarquivar a história do golpe civil-militar (1964-1985) é começar a espanar este cinismo, mas é só o começo, pois não se trata apenas de desarquivar uma memória para instituí-la como história estática posta no papel, mas de desvelar o passado para mudar o presente e construir um futuro diferente. Como diz o escritor, jornalista e ex-preso político Alípio Freire: “É exatamente a impunidade dos criminosos de ontem que estimula, naturaliza, banaliza e torna impunes os crimes, chacinas e massacres do presente” (em entrevista, Alípio Freire destaca a urgência da abertura dos arquivos da ditadura). A violência, seja ela cometida diretamente pelo Estado ou produto da imobilidade deste, volta-se hoje às chamadas minorias, populações em situações fragilizadas e marginalizadas, como os ameríndios, os trabalhadores rurais e os moradores das periferias urbanas. Os dados das mortes de lideranças populares são não somente estarrecedores (Assassinatos no campo: drama emergencial e Relatório de violência contra os povos indígenas no Brasil – 2010) como a prova cabal de que aquilo que Idelber Avelar chama de “desmemória” (Desarquivando o Brasil: o luto numa terra de cadáveres insepultos) tem consequências funestas.
Desarquivar é tornar viva a memória.
*Antropóloga, professora da EFLCH-Unifesp, filha do senador João Capiberibe e da deputada Janete Capiberibe, é autora de Batismo de fogo: os Palikur e o Cristianismo (Ed. Annablume)
Publicidade
Deixe um comentário