Raimundo Caramuru Barros*
Mais de 140 países endossaram uma iniciativa das Nações Unidas para concluir até 1912 um Tratado do Comércio de Armas, visando criar vínculos obrigatórios para regular o comércio mundial de armas convencionais. Os Estados Unidos, na qualidade de maior fabricante de armas do Planeta, recusou-se sistematicamente – ao longo dos dois mandatos de George W. Bush (2001 a 2009) – a aderir a esta iniciativa, devido à influência de seu vice-presidente, Dick Cheney, vinculado às indústrias americanas de armas. No último mês de outubro (2009), porém, o Presidente Barack Obama anunciou o apoio do Governo americano a este Projeto, assegurando assim sua viabilidade e sucesso, dado o peso decisivo deste país neste ramo de comércio.
Do ponto de vista histórico, antes da era cristã existem apenas alguns raros e esparsos registros de tentativas de controle de armas. No final do primeiro milênio depois de Cristo, foi a Igreja Católica que patrocinou e liderou o tratado “Paz de Deus”, em 989, protegendo da destruição bélica os não combatentes, bem como as instalações civis de natureza econômica e religiosa, tanto rurais como urbanas. O tratado de 1027, denominado “Trégua de Deus”, procurou evitar a violência entre cristãos. O Segundo Concílio do Latrão de 1139 proibiu, no caso de guerra entre cristãos, o uso de certas armas mortíferas para a população civil. Hoje, existem mais de vinte tratados sobre controle de armas, desde armas químicas e biológicas, passando por armas nucleares, até o estabelecimento de zonas livres de armas.
Para o Brasil, essa questão assume hoje vital importância, devido ao alto índice de exclusão social registrada pelo país e da disparidade constatada entre suas diferentes Macrorregiões e Unidades da Federação. Os elevados segmentos da população brasileira – vítimas de discriminação, mas com acesso hoje crescente às informações veiculadas pelas novas tecnologias da comunicação – são levados a abrir seu caminho próprio de afirmação através do crime organizado. Além disso, para conseguir os recursos capazes de financiar seus empreendimentos criminosos, recorrem cada vez mais ao lucrativo comércio de drogas e entorpecentes. A conseqüência deste coquetel macabro é a formação progressiva de um governo paralelo que abala a segurança pública ao incrementar e banalizar a violência, e ao mesmo tempo desfigura e distorce o exercício da cidadania, e assim solapa os fundamentos mesmos da democracia.
O referendo de 23 de outubro de 2005 sobre a proibição no Brasil do comércio de armas de fogo e munição foi rejeitado por uma maioria esmagadora dos eleitores brasileiros. Dois fatores, entre outros, ajudam a entender este resultado naquele contexto histórico.
Em primeiro lugar, a discriminação social apontada acima, nomeadamente as estruturas opressivas que impedem milhões de brasileiros (as) a se tornarem cidadãos e cidadãs de pleno direito em um regime democrático: a existência de trabalho escravo e trabalho infantil; 55% da população vivendo abaixo da linha pobreza destituída dos meios de habitar e de se vestir condignamente; 14% dos pobres degradados ao nível da indigência por não disporem de acesso à alimentação indispensável à sua subsistência. O eleitor aproveitou o referendo para expressar a sua interpelação e protesto contra esse paradoxo político e social.
Em segundo lugar, os fabricantes e comerciantes de armas resolveram financiar e articular uma nababesca campanha através dos meios de comunicação social, apelando para um sofisma, que insinuava ser a posse de armas um direito fundamental da pessoa humana, que não podia ser negado nem supresso pelo Estado. Por ironia da história, apenas quatro anos depois, os milhões de brasileiros (as) socialmente excluídos (as), tanto nas periferias urbanas, como no interior do país, passaram à condição de vítimas relevantes do crime organizado e do comércio de armas e drogas.
Para enfrentar esse desafio, uma reorientação de todo o sistema educacional brasileiro, tanto em termos de educação formal, como de educação continuada, faz-se necessária. De outro lado, porém, o projeto das Nações Unidas, hoje apoiado pelo Governo norte-americano para ser concluído em 2012, visando regularizar em termos obrigatórios o comércio internacional de armas convencionais, e a tomada de consciência da população brasileira de que precisa dar um basta à escalada geométrica da violência em território nacional, são fatores que podem estimular o Brasil a lançar mão do instrumento legislativo mais apropriado capaz de reparar o fracasso do referendo e 23 de outubro de 2005.
* Filósofo e teólogo, com mestrado em Economia nos EUA, foi consultor do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e atuou como especialista nas áreas de transportes, trânsito e meio ambiente, dedicando-se em seguida à assessoria de diversas organizações não-governamentais. É autor de “Desenvolvimento da Amazônia – como construir uma civilização da vida e a serviço dos seres vivos nessa região” (Editora Paulus, 2009), entre vários outros livros.