É comum dizer que nos países subdesenvolvidos (chamados “emergentes”) os trabalhadores não qualificados têm vida de escravos: não têm horário certo, recebem salários miseráveis, carecem de seguros e previdência, podem ser demitidos a qualquer momento. Mas, em alguns países, há algo mais que uma metáfora da escravidão. Por exemplo, no Brasil e outros se pratica a escravatura em sentido estrito.
Centenas ou milhares de fazendeiros, garimpeiros, traficantes e contrabandistas, protegidos por jagunços, pelas polícias locais e pelos políticos e magistrados de seus estados, mantêm presos trabalhadores de todas as idades, sadios ou doentes, obrigados a trabalhar até desmaiar, sem receber salário nem ter acesso a uma comida minimamente limpa. Comparados com eles, os escravos do final do Império eram verdadeiros privilegiados.
Esta bárbara situação está apoiada e consentida não apenas por políticos locais desconhecidos, mas possui um poderoso lobby no coração do poder brasileiro. Em 2005, a Câmara de Deputados teve um presidente escolhido de maneira nauseosa pela direita, que colocou o país em ridículo até nos foruns internacionais. Ele defendeu ardentemente os deputados que mantinham escravos em suas fazendas e, embora fosse criticado por seu estilo brutal e estólido (confundiu uma vez o presidente Lula com o finadíssimo presidente Dutra), apenas o deputado Fernando Gabeira teve a coragem de encará-lo por sua apologia da escravatura.
A Proposta de Emenda à Constituição número 438, que viaja pelas dependências do Parlamento e dorme nos arquivos há muito tempo, deveria ser aprovada, se o empenho do governo federal fosse bem sucedido, antes do dia 13 de maio, para celebrar os 124 anos de atraso com que chega a sociedade brasileira.
Para um atraso tão grande, seu conteúdo não é maravilhoso, embora mereça o maior apoio se tivermos em conta que a escravidão é, junto com o genocídio e a tortura, a pior mazela da humanidade. A PEC propõe o confisco total, sem direito a indenização, da terra dos “donos de escravos” e sua entrega aos camponeses que a trabalhavam. Esta medida tem duas virtudes: além de permitir afixar colonos sem terra, sua principal relevância está no fato de que a terra é a arma do escravista.
Confiscada sua terra, ele terá que abandonar sua infame tarefa… ou então, conseguir outra fazenda, com os mesmos métodos criminosos já usados.
Com efeito, a PEC fala de “sanções cabíveis de acordo com a lei”, mas nenhuma lei brasileira trata o trabalho escravo como um crime contra a humanidade. O escravista deveria ser condenado como autor de tortura e homicídio qualificado, e a pena para ele deveria ser compatível com a gravidade de um crime de lesa humanidade. Vergonhosamente, quando um escravista é “punido” hoje em dia, ele paga uma multa menor da que pagaria um infrator de trânsito.
O problema mais grave não está na política interna do Brasil, já que o histórico escravista, feudal e coronelista do país faz difícil pensar que pudesse existir por própria vontade uma estrutura rural democrática. A atitude mais repudiável é a do sistema internacional, que condena claramente a escravidão em vários diplomas legais, mas não é capaz de obrigar seus membros a cumpri-los. No caso de Brasil e outros países que mantêm trabalho escravo, nem a ONU nem sua ancestral, a Liga das Nações, foram capazes de aplicar coerção sobre esta mazela.
Com efeito, a escravidão foi internacionalmente proibida desde a Convenção de Genebra de 25/09/1926, mas nas décadas seguintes as leis internacionais foram aprimoradas. Já no artigo 5º da Convenção de 1956 se estabelecem punições para a escravocracia. Todavia, para os que têm 124 de história “pós” escravidão, os 56 anos passados desde 1956 significam muito pouco.