Bajonas Teixeira de Brito Junior *
As coincidências são uma parte, por assim dizer, à parte do mundo. Muitos escritores e poetas já falaram delas, mas não existe uma teoria filosófica das coincidências. E a razão é simples: a coincidência já está inscrita numa das categorias filosóficas mais antigas, a do acidente. Algumas coisas são chamadas de acidentais e, outras, de essenciais. Por exemplo, se um grupo de empreiteiras de grande porte assina com o governo federal o compromisso de respeitar um determinado cronograma — digamos, o das obras da Copa —, pode acontecer que uma ou outra atrase. Isso seria algo de natureza acidental. Ou seja, alguns motivos de força maior explicariam que a empreiteira X ou a empreiteira Y, por injunções inesperadas e contrárias a todas às suas expectativas e intenções, foram obrigadas a postergar a entrega do estádio B ou da estrada C até que o fornecimento normal de mão de obra barata seja normalizado etc. etc.
Nesse caso, se trataria de acontecimento acidental. Coisas acidentais não são consideradas, principalmente pela filosofia, geralmente sequer dignas de atenção. Se o bigode de Hitler era ridículo, isso é totalmente desprezível para uma teoria do fascismo. Mas o que acontece se o acidental não é tão acidental assim? Por exemplo, muita gente lembra que na época das privatizações do setor elétrico começaram os apagões. Foram constatadas diversas explosões de torres de energia, o que em geral costuma ser designado com o nome de “sabotagem”. Isso não foi investigado e nunca se encontraram culpados (e seria difícil encontrar, se não foram sequer procurados). Exatamente porque foi tomado também como desprezível pela mídia, como puramente acidental, embora afetasse real ou potencialmente a vida de milhões de pessoas, o assunto morreu sem deixar vestígios.
Atualmente, estamos diante de fatos de outra natureza, mas que também nos chamam a atenção pela dificuldade de inseri-los na categoria das coisas essenciais ou na categoria das coisas acidentais.
Hoje pela manhã, depois de um compromisso na universidade, passei em uma loja associada à rede Estante Virtual, ou seja, passei em um sebo, à busca de um livro de Paul Baran. Enquanto esperava, apoiado no auxílio luxuoso de uma das estantes de metal, o atendente procurar o livro, fato que não logrou êxito, o amigo que pacientemente me acompanhava apontou para o meu cotovelo. Só então eu vi que estava encostado em dois livros postos à venda que, por acaso, tinham sido escritos por mim mesmo, a Lógica do disparate e a Lógica dos fantasmas. Achei engraçada a coincidência. Os dois exemplares eram usados. Um deles até muito usado, muito riscado. Fico intrigado com isso porque, nunca tendo trabalhado com esses livros em meus cursos, mal consigo imaginar a índole belicosa desses leitores vorazes. Mas o fato é que lutar com um livro de filosofia não é muito fácil. Sábias e, ouso dizer, profundas, as palavras que dizem a “rapadura é doce, mas né mole, não”. Seria essa (a dureza de rapadura) a culpa filosófica que condena esses meus exemplares a penarem nas prateleiras dos sebos? Que a estante (virtual) lhes seja leve.
Mas, enfim, deixando essas reflexões secundárias de lado, hoje, mal cheguei em casa, vi na tela um artigo no Yahoo, saído de O Estado de São Paulo, com o seguinte título: “Só três das 82 obras prometidas para a Copa mantêm gastos e cronograma”. É o tipo de coincidência que me interessa. E eu explico o motivo. Se duas obras, ou três, não cumprissem o cronograma, estaríamos diante de uma situação de casualidade, isto é, de coisas acidentais. Se, ao contrário, de 82 obras, apenas três estão no cronograma, então estamos diante de um caso que normaliza o descaso. Ou seja, o que vira norma é aquilo que, em todos os “lugares sérios”, acontece só por exceção. Só no Brasil a exceção é quem governa os fatos. Com isso, inverte-se tudo, e o meramente casual é que se torna o essencial. Aliás, no essencial a matéria diz o seguinte:
Publicidade“Das 82 obras de mobilidade urbana, portos e aeroportos prometidas em 2010, por meio de um documento chamado matriz de responsabilidades, somente três permanecem com igual cronograma e orçamento. 21 empreendimentos foram retirados do compromisso, 25 tiveram o orçamento alterado e os demais 33 experimentaram ao menos mudança no prazo de conclusão. Em três anos, outras 28 obras de mobilidade urbana foram incluídas na previsão e somente sete delas chegaram a ser entregues até agora.”
Uma coisa que, conhecida há muito tempo, está num dos ditados mais óbvios que existem, é que a pressa é inimiga da perfeição. Na verdade é pior: a pressa é inimiga até mesmo da mera imperfeição. Só as gambiarras de quinta categoria são compatíveis com a pressa. Até porque a pressa torna mais difícil a fiscalização, um dos princípios básicos nas obras públicas. Por isso, as coincidências no Brasil parecem ter uma origem muito secreta e não podem deixar de intrigar quem tem interesse pela filosofia. Principalmente porque o documento assinado pelas empreiteiras, que estabelece o cronograma das obras, se chama Matriz de Responsabilidades. Note-se a ressonância presunçosa e pomposa dessa nomenclatura administrativa autenticamente inovadora: matriz de responsabilidades. É mais uma das inovações que servem durante alguns anos para fascinar os ouvidos brasileiros, com conseqüências bastante alarmantes. As palavras ditas pela presidenta Dilma Rousseff, ministra da Casa Civil à época da assinatura da Matriz de Responsabilidades, devem ser lidas porque são lindas:
“A matriz de responsabilidades traz projetos realistas que podem ser concluídos nos prazos determinados. Um legado permanente, um ganho significativo para a população das cidades”.
Se é possível medir o desempenho de uma turma de estudantes pelo que eles não aprenderam, e se uma prova entregue em branco significa (quase sempre) que o estudante não aprendeu nada, exibindo 100% de ignorância sobre o assunto, a entrega de três obras num total de 82, indica a mesma coisa: o aprendizado da responsabilidade, quando o assunto são grandes obras e vultosos recursos públicos, por nossas empreiteiras chega perto do zero absoluto. Ou, visto por outro ângulo, sua matriz de irresponsabilidades chega muito próximo dos 100%. Mas as empreiteiras não são neófitas, elas são mestras, são doutoras, são pós-doutoras em conexões movidas a interesses da cadeia alimentar do Estado.
Pois bem. Eu tinha saído de casa e lembrei de procurar o livro do Paul Baran justamente porque ele é bastante citado num livro que estou lendo, O anti-Édipo, de Deleuze e Guattari. Um grande livro que, infelizmente, andou em más companhias por muito tempo, o que, talvez, tenha contribuído para que eu atrasasse o meu cronograma de leituras em quase 25 anos. Mas creio que com isso o Brasil não perdeu nada. Talvez tenha até ganho. E digo isso porque, ao chegar em casa hoje e dar de cara com a matéria sobre a malfadada (mas benfazeja, para as empreiteiras) “Matriz de Responsabilidades”, me senti bastante constrangido, uma espécie de cólica republicana, ou depressão democrática, me atingiu em cheio. Resolvi me refugiar na leitura do livro, curtindo um pouco a minha cava indisposição. Abri O Anti-Édipo na página em que tinha parado ontem, mas já na segunda linha tropecei com essa passagem:
“e descobre a matriz da figura no fantasma”…
Não vou explicar ao leitor o que essa passagem na página 324 do livro significa. Tenho muitas dúvidas se compreendi o que ela quer dizer. Só não esqueci que, nessa manhã, esbarrei casualmente na minha Lógica dos fantasmas no sebo e, chegando em casa, bati os olhos no artigo sobre a Matriz de Responsabilidades para, logo depois disso, sem mais nem menos, me aparecer essa frase: “e descobre a matriz da figura no fantasma”… São coincidências como essas, que me causam arrepios de terror cívico, que me levam a escrever artigos como esse que termino aqui. Penso que é urgente elaborar uma teoria filosófica das coincidências aberrantes em países tropicais. Ou melhor, trópico-espectrais.
PS: Enquanto as empreiteiras “estão andando” para as normas, ou seja, os cronogramas e as matrizes de responsabilidades que elas mesmas ajudaram a escrever, os índios brasileiros enfrentam mais uma: o governo do Rio de Janeiro quer promover uma carnificina na sede do antigo Museu do Índio, onde há anos se abrigam famílias de índios (60 no total, uma tribo ao lado do Maracanã, que é palavra tupi se não me engano). O governador e seus amigos querem construir um shopping center no local. Em outros tempos, o museu estaria tomado por estudantes de antropologia, de geografia, de sociologia, de história, etc., justificadamente raivosos e vociferantes, intelectuais e professores universitários — os de antropologia em especial — estariam expondo publicamente sua santa ira em manifestos e entrevistas, artistas que jogam bola (como o Chico Buarque) teriam organizado uma partida beneficente no Maracanã, a Avenida Rio Branco seria palco de passeatas e confrontos, etc.
Hoje, submetida por idéias tão exóticas quanto às de “matriz de responsabilidade”, “governança”, “espírito republicano”, “gestores públicos”, etc., a opinião pública brasileira se tornou uma massa amorfa e inerte. Está inteiramente subjugada. O mundo pode explodir lá fora que ela não se mexe no sarcófago. Viva o caixão. Na próxima semana os papa-defuntos do Rio podem ter sua clientela aumentada. Porque os índios já disseram que vão resistir com arco e flecha contra o armamento israelense da polícia. É possível que, num gesto filantrópico (trópico-espectral, como dito acima), o governo do estado até dê uma ajuda de custo para a compra de novas residências, individuais e de madeira barata, com forro de cetim roxo por dentro, para os índios desafortunados no confronto com a PM. Para aproveitar, vai erguer um memorial às vítimas, ao lado do shopping center, desenhado pela equipe funerária do recém passado Niemeyer, que servirá também como atração turística durante a Copa.
* Doutor em Filosofia, autor dos livros Lógica do disparate, Método e delírio e Lógica dos fantasmas. É coordenador da revista eletrônica Revista Humanas e professor da UFES.