A decisão da desembargadora Carla Reis, do Tribunal de Justiça do Amazonas, que determinou o retorno imediato do ex-prefeito Adail Pinheiro para o regime semiaberto, demonstra que o desrespeito às leis e aos princípios constitucionais não tem se tornado uma regra no Brasil.
A liminar concedida suspende os efeitos da sentença que aplicou ao ex-prefeito do município de Coari indulto com base em decreto presidencial assinado pelo presidente Michel Temer. A decisão da juíza reforça a velha máxima de que não basta que todos sejam iguais perante a Lei. Mas é preciso que a Lei seja igual perante todos.
Adail, que havia sido condenado a 11 anos e 10 meses de prisão pela prática de exploração sexual de crianças e adolescentes, ganhou liberdade após sua condenação ter sido extinta pelo decreto de indulto natalino.
O ex-prefeito foi beneficiado por um decreto mal elaborado. O texto excetua expressamente do indulto as pessoas condenadas pelos crimes de filmar, divulgar e fotografar cenas de sexo envolvendo crianças e adolescentes. No entanto, talvez não por mera coincidência, o texto deixa de ressalvar do direito ao indulto pessoas condenadas por exploração sexual de crianças e adolescentes.
O decreto também deixou de excluir expressamente do direito ao indulto as pessoas condenadas pelo crime de exploração sexual e estupro contra vulneráveis, que trata de “induzir alguém menor de 14 anos a satisfazer a lascívia de outrem”.
Além das lacunas deixadas pelo decreto, a decisão que concedeu o perdão da pena ao ex-prefeito foi equivocada. Adail jamais poderia ter sido enquadrado como beneficiário do decreto, pois diferentemente da interpretação dada pelo juiz e pelo Ministério Público do Amazonas – de que o ex-prefeito preenchia todos os requisitos previstos – é público e notório o péssimo comportamento de Adail durante o cumprimento da pena.
O decreto concede o indulto somente para os crimes que foram praticados sem grave ameaça ou violência, o que não se aplica ao ex-prefeito, uma vez que os crimes de exploração sexual contra crianças e adolescentes, por ele cometidos, foram praticados a partir do uso de grave violência, coação e ameaças.
PublicidadeComo é que estuprar uma menina de 11, 12 anos não é considerado uma violência. Como é que exploração sexual de vulneráveis não é uma violência?
São violências, sim, e que não se resumem ao ato, porque as meninas exploradas são comumente as mesmas que foram vitimadas pela desigualdade social, pela pobreza, empurradas para a exploração sexual. São meninas que abriram mão da sua liberdade, da sua vida, da sua condição humana e que ficaram marcadas para sempre, seja pelo estigma, seja pela dor que carregam no corpo e na alma.
O decreto também excetua do direito ao indulto aqueles que cometeram crime hediondo. Neste aspecto, a decisão anterior da Justiça do Amazonas não considerou que hoje a exploração sexual de crianças e adolescentes está tipificado como um crime hediondo.
Ainda que no momento da condenação do ex-prefeito, a exploração sexual não fosse considerada um crime hediondo – e em matéria de direito penal não há retroatividade da lei – atualmente, o crime é hediondo e a Justiça não poderia ter extinguido a pena de alguém que cometeu crimes dessa gravidade.
O ex-prefeito, que cumpriu apenas três anos de sua pena, chegou a utilizar recursos públicos e servidores públicos para alimentar e estruturar uma rede de exploração sexual de crianças e adolescentes da qual se beneficiou ele próprio e pessoas do seu círculo de amizade.
Poderoso, influente e com ramificações em diversas instâncias do poder público do Amazonas, inclusive, no judiciário, o ex-prefeito estava preso desde fevereiro de 2014, em grande medida por ação da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados que investigou a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.
À época, a CPI fez um enfrentamento muito grande para que o ex-prefeito pudesse ser julgado, condenado e preso, pois havia leniência do poder judiciário do Amazonas. Adail detinha muito poder político e econômico, afinal dirigia o segundo município mais rico do Estado. Nesse sentido, a CPI juntamente com o apoio de organismos de defesa dos direitos humanos e da sociedade civil empreenderam esforços para que se pudesse romper com o manto da impunidade.
A CPI teve a oportunidade de estar no município de Coari algumas vezes, onde pode-se verificar um verdadeiro ciclo de horrores. Vimos uma cidade tomada pelo medo e pela violência. Aqueles que ousavam denunciar as práticas criminosas do ex-prefeito eram vítimas de todo o tipo de ameaças.
A comissão acolheu inúmeros depoimentos de práticas intimidatórias, a exemplo, de casas alvejadas por balas e animais de estimação mortos, atos supostamente ligados ao fato das pessoas terem denunciado as práticas ilícitas de Adail. Inúmeras vítimas de exploração sexual tiveram de deixar o município. Mesmo assim, continuaram sendo rastreadas e submetidas a toda sorte de perseguições e ameaças.
O que vimos em Coari foi o Estado Democrático de Direito ser rompido, dilacerado, por um ex-prefeito que utilizou recursos públicos e servidores públicos como se sua propriedade fossem.
Foram mais de seis anos para que Adail pudesse ser condenado e preso. Quantas meninas foram vítimas durante todos esses anos? Quanto sofrimento e dor causou desde a data em que ele foi denunciado por exploração sexual, mas por absoluta morosidade e leniência da Justiça seguiu livre cometendo seus crimes?
O indulto a Adail era um retrocesso civilizatório, pois reafirmava a postura de um Estado que historicamente tem relegado crianças e adolescentes a toda sorte de violações de sua dignidade, tendo como aspecto mais sombrio, a violência.
Avançamos muito do ponto de vista do arcabouço jurídico e legal, a partir do reconhecimento constitucional da proteção integral. No entanto, casos como o de Adail, reafirmam a necessidade de arrancar do papel a cidadania de crianças e adolescentes para que seus direitos possam se tornar efetivos e não somente letra inócua da lei.
A exploração sexual de crianças e adolescentes é uma violência horrenda, mas é muito mais violento não reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, seres humanos especiais, que têm características próprias e que não devem, em hipótese alguma, ser alvo de práticas que visem silenciá-las, reprimi-las e discriminá-las. É dever do Estado desenvolver políticas de acolhimento, proteção, segurança, defesa e valorização.
O caso de Adail era especialmente grave, pois estávamos falando de um indulto que perenizava a violência adultocêntrica e de gênero, naturalizava a impunidade, além de contribuir para aumentar a sensação de que não existe Justiça para pessoas influentes e poderosas, contribuindo, assim, para a completa descrença da sociedade no Estado Democrático de Direito.
Reverter essa decisão, mesmo que de forma liminar, foi fundamental para que possamos reafirmar uma sociedade em que o machismo e a exploração sexual de meninas não é vista como algo banal.
Esperamos que o Pleno da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Amazonas julgue o recurso, no sentido de anular o indulto de Adail. Tal decisão seria um símbolo de rompimento com um ciclo de violência e medo vivenciado por suas vítimas, algo, que, certamente, voltaria a reinar em Coari, reduto em que o político exercia um poder onipotente.