De onde menos se espera, daí é que não sai nada. Desta vez, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, desmentiu a frase espirituosa de Aparício Torelly, o Barão de Itararé. E como!
Ela pediu ao Supremo Tribunal Federal que desarquive e julgue uma reclamação feita à Corte em 2014 por cinco agentes da repressão política envolvidos na morte do deputado Rubens Paiva durante o terrorismo de Estado desembestado pela ditadura militar.
Com isto, está dando ao STF mais uma oportunidade para recolocar em discussão a anistia concedida às bestas-feras do regime de exceção em 1979 e, espera-se, mudar uma de suas mais escabrosas decisões em todos os tempos: a de ter considerado válida, em abril de 2010, uma gritante aberração jurídica.
Pois é praticamente unânime, no mundo civilizado, o entendimento de que são inaceitáveis em termos jurídicos as anistias decididas durante a vigência de ditaduras, pelo simples motivo de que tais regimes tendem a impor sua aceitação mediante várias formas de pressão, visando garantirem uma espécie de habeas corpus preventivo para seus gorilas, no sentido de colocá-los a salvo de responderem por seus crimes quando a democracia for futuramente restabelecida.Foi exatamente o que aconteceu no Brasil. Os oposicionistas de então engoliram o sapo de ajudarem a livrar a cara de assassinos seriais, torturadores, estupradores e ocultadores de cadáveres porque tal foi a contrapartida exigida para a libertação dos presos políticos e a permissão de volta dos asilados.
O nome disto, em português claro, é chantagem. E o STF, que avalizou uma chantagem em 2010, poderá agora limpar sua imagem.
O caso é o seguinte: cinco militares, responsáveis pela morte e a ocultação do cadáver de Rubens Paiva (além de fraude processual e formação de quadrilha), pediram para o STF barrar a tramitação de uma ação penal aberta contra eles na 4ª Vara Federal no Rio, com base na supremamente pusilânime decisão de 2010; o falecido Teori Zavascki deu liminar suspendendo a ação penal contra os cinco, mas o mérito da reclamação, que diz respeito à discussão sobre a anistia, nunca foi julgado.
O STF certificou indevidamente o trânsito em julgado do processo e o remeteu ao arquivo; Dodge pede a reabertura do processo, para que o Supremo faça o que ficou faltando, ou seja, julgue o mérito da controvérsia. Ela lembrou que os crimes de tortura são imprescritíveis, além de destacar “a necessidade de reflexão a respeito do alcance da anistia reconhecida” pelo STF em 2010 (no que está certíssima, pois esta, na prática, igualou vítimas a carrascos).
Finalmente, Dodge alega que, como o corpo de Rubens Paiva até hoje não foi localizado, caracteriza-se o crime também permanente de ocultação de cadáver, que “afasta por completo qualquer cogitação de prescrição”.
Com a palavra, o STF. Tomara que finalmente fale em nome da Justiça, ao invés de miar para atender conveniências políticas…
*Celso Lungaretti é jornalista, escritor e ex-preso político. Edita o blog Náufrago da Utopia.
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