Redator de discursos por profissão e vocação, tenho acompanhado, nestes 10 anos, as transformações do léxico político nacional, observando como palavras e expressões entram e saem de moda ao sabor das conjunturas internas e externas.
Ultimamente, o republicanismo tomou conta da logosfera parlamentar. Senadores e deputados, em seus pronunciamentos no Grande Expediente ou no pinga-fogo, exaltam os “valores republicanos”, as “virtudes republicanas”, os “sentimentos republicanos”, a “República”, e por aí vai.
Não estou certo quanto à origem desse modismo. Arrisco o palpite de que a multidão – à esquerda e à direita do espectro ideológico brasileiro – de genuínos ou pretensos discípulos do saudoso pensador italiano Norberto Bobbio tenha buscado inspiração em duas de suas obras recentemente lançadas por aqui: Entre duas repúblicas, pela editora da Universidade de Brasília, e Diálogos em torno da república (esta última em co-autoria com Maurizio Viroli), pela Campus.
Claro que a rica e erudita influência bobbiana no debate político de nosso país é para lá de bem-vinda, sobretudo quando contemplamos a terra devastada das ciências humanas brasileiras onde pululam intelectuais e acadêmicos anencefálicos professando um culto rotativo às fraudes internacionais da hora: Derrida, Bourdieu, Lacan, Negri et caterva, além das escolas do multiculturalismo e dos estudos de gênero, novas atrações de um bestiário pós-marxista mambembe.
Meu receio é que, logo, logo, o abuso irrefletido condene o campo semântico republicano à vala da irrelevância comum já entulhada de despojos do “neoliberalismo”, da “globalização”, da “ética na política”, entre tantas vedetes de debates pretéritos. Ora, se todo mundo acha que pode usar um conceito de estimação ao seu bel-prazer, seja para valorizar as próprias opções (caso da ética política ou das virtudes republicanas), seja para desqualificar as do adversário (neoliberal funcionou como termo ofensivo ao longo de toda a década passada, até que, mais recentemente, o PT no governo demonstrou, por seus atos, que ética no Waldomiro dos outros é refresco), então a palavra perde sua capacidade de discriminar entre diversos aspectos da realidade. Torna-se imprestável como ferramenta analítica.
Assim, antes que o vale-tudo da linguagem política torne irreconhecível o termo república e seus derivados, vamos examinar rapidamente a que eles se referem/não se referem.
Nessa empreitada, podemos contar com a orientação segura dos escritos políticos do filósofo liberal alemão Immanuel Kant, cujo bicentenário de morte caiu neste ano. Para Kant, é preciso, antes de mais nada, distinguir a natureza fundamental de um regime da classificação das formas de governo.
Quanto à natureza, um regime será despótico se não estabelecer limites ao poder do governante sobre os governados, nem admitir conviver com mecanismos de representação dos múltiplos interesses da sociedade (partidos, lobbies). Será republicano se os poderes do Estado se limitarem reciprocamente, conforme o modelo inglês estudado por Montesquieu e posto em prática pelos pais fundadores da república norte-americana no século XVIII ou, mais remotamente, de acordo com os regimes mistos compendiados por Aristóteles e Políbio na Antigüidade.
Outra característica essencial das repúblicas é o funcionamento vigoroso das instituições representativas. Em suma, trata-se de um ambiente civilizado, em que o amor à igualdade de todos perante a lei produz anticorpos contra os clãs familiares e partidários que se atrevem a usar patrimônio público para fins privados. República é o governo a serviço do cidadão.
Quanto à forma, Kant recapitula a lição dos clássicos, lembrando que os governos podem ser de um (monarquias), de poucos (aristocracias), ou de muitos (democracias).
Nessa perspectiva, não há contradição de fundo entre um regime de essência republicana e de forma monárquica, como, aliás, o provam os avançados governos escandinavos na atualidade. Já a “república” que os militares positivistas proclamaram e as oligarquias rurais consolidaram no Brasil da virada do século XIX – com suas eleições a bico-de-pena e a questão social tratada como “caso de polícia” – podia ser tudo, menos republicana.
Infelizmente, já convivi demais com a política e com os políticos para nutrir qualquer ilusão de que essas finas distinções conceituais encontraram espaço no jogo bruto do poder. República e republicanismo continuarão sendo empregados como instrumentos de defesa e ataque verbais até que uma nova (ou velha) palavra de ordem tome o seu lugar. Afinal, como adverte Millôr Fernandes, “moda é tudo aquilo que sai de moda”.
Aos leitores e amigos do Congresso em Foco, feliz Natal, ótimo Ano Novo e, apesar de tudo, viva a República!
(*) Professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e analista da Kramer & Ornelas – Consultoria.
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