Eu sempre digo que não atravesso uma rua,que não digo bom dia ao porteiro do meu prédio, sem antes consultar meus preconceitos. Na maioria das vezes eles – que são muitos e das mais variadas espécies e categorias – são bons conselheiros. Eu os assumo. Tenho preconceito contra borda de pizza recheada com catupiry, não tolero balconistas que perguntam se “é pra viagem” (se fosse eu pedia, ora!) e acredito que o mundo seria muito melhor se Carlinhos Brown e Regina Casé e as terceirizações de ambos não existissem. Até aqui nenhuma novidade.
A grande novidade é que surgiu um novo tipo de preconceito na praça. E, embora eu compartilhe 100% da nova modalidade, juro que não fui eu quem o inventou. Trata-se do preconceito contra apresentadores de televisão apadrinhados por bispos neo-evangélicos.
E se Russomano fosse macumbeiro, homossexual, preto e se chamasse Silva? Seria odiado e rejeitado pela “inteligência esclarecida” da mesma forma que é somente porque apresenta programas sensacionalistas na tevê, é branco e apadrinhado pelo Edir Macedo? A ojeriza se deve à imagem ou àquilo que ele efetivamente representa? Se é impossivel dissociar uma coisa da outra, seria o caso de dizer que existe uma intolerância tolerável? Uma espécie de preconceito politicamente correto?
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Voltei pra SP pra ver minha gata, palestrar no SESC , assistir o show do Bortolotto, que fez 50 anos cantando Robertão, e combinar o lançamento do meu infantil com o Pedro Galé, oquei. Resolvi que ia comer uma feijoada no bar da Geralda. Quando chego na Nestor Pestana não existe mais a Kilt. Derrubaram o Castelinho da Cinderela. De uma hora pra outra, minha memória afetiva – que já é um escombro pela própria natureza – vira um amontoado de nada.
Pra quem não é de São Paulo, explico: a Kilt era mais do um puteiro. Era uma lenda. Bem, vou fazer uma comparação que vai parecer descabida pra muita gente. Seguinte. Quando se trata de Teatro Oficina, o lugar é sagrado. Aquela frescura. Tem a arquitetura da Lina Bardi, invoca-se o Exu de Oswald, Oswald … com aquele sotaque insuportável dando ênfase ao “d” mudo que o próprio “Homem do Povo” repudiava, e ninguém mexe. Tem verba da Petrobrás, chilique do Zé Celso e o escambau. A mim, o Oficina nunca disse nada. Inclusive, eu moro (ou morava, sei lá) nas redondezas. Acredito sinceramente que a permanência do Oficina naquele lugar é prejudicial ao entorno. A região adjacente … ou “aquilo ali” virou anteparo da miséria humana. Um lugar ermo, violento, degradado. Sou a favor de construir um shopping bem escroto no local, pelo menos vai ter banheiro limpo pra gente cagar e iluminação nas vias públicas. Você que está odiando o que eu escrevo, experimente subir a rua Jaceguai de madrugada. Vai lá.
A questão é a seguinte. O Castelinho da Nestor Pestana era paisagem da minha libido. No meu caso, mais paisagem do que carne. Nunca tive grana pra gastar lá dentro, mas a Kilt funcionava como matéria de ficção, era minha ondina, minha fada guardiã dos tesouros dos Nibelungen, minha Lorelei/ Mandiopã. E eu garanto que o Castelinho ocupou não só a minha libido, mas o tesão de muita gente – e por décadas. Só que essa gente não é artista pra reclamar, né?
Eu só queria ver a gritaria se, da noite pro dia, derrubassem o Teatro Oficina. Que – a meu ver – não passa de uma libido artificial, oficializada às custas de ladainha, e muito chilique do Zé Celso.
Derrubar o Castelo da Kilt foi um desastre. Um desastre simbólico. Porque arquétipos não são exclusividades do mundo do teatro, e nem das artes no atacado. Os signos se impõem como aleijões no inconsciente das cidades. Por si só, e muito raramente funcionam quando planejados. Vejam só o Memorial da América Latina. Aquilo ali é um deserto, não diz nada a São Paulo e muito menos à América Latina.
Acontece o oposto vertiginoso com a estátua do Borba Gato. Que é uma aberração, porém, ao mesmo tempo, é um sucesso que se impôs pela sua própria natureza grotesca, o bandeirante sanguíneo pulsa no ritmo pesado da cidade, apesar do suposto bom gosto daqueles que o abominam. Aquilo ali é imune a qualquer tipo de macumba antropofágica. Aliás, se eu fosse o prefeito mandava construir uma réplica do Borbão dentro do Oficina, e metia o bacamarte na bunda do Zé Celso – ele ia adorar. Tentem imaginar São Paulo sem o Borba Gato ou imaginem um microondas gigante em cima do Corcovado.
A Nestor Pestana ficou banguela sem a Kilt. Eu me senti um assexuado ao passar por aquela esquina, minha libido ficou mais molenga que a pança do Kassab. Só pra dizer que eu carregava a breguice e as doenças venéreas daquele lugar na alma. E agora? Quem é que vai indenizar minha memória afetiva gonocócica e o meu mal gosto encalacrado?
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Será que alguém lembrou de salvar os vikings da demolição?
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Ufa! Hebe morreu.
Um trecho do Monólogo da Velha Apresentadora, peça que escrevi em “homenagem” a Hebe Camargo quando ela, e o saudoso Guzik que a interpretou no palco dos Satyros, ainda viviam:
“Um Cadillac preto estacionava na frente do apartamento do Flamengo, e levava a biscate. O chofer pessoal do dr. Getúlio vinha apanhá-la e seguiam direto para Poços de Caldas:
Hebe – Uma vez só participei de uma festinha no Palace Hotel. Virginia me levou – é claro – porque foi obrigada. Se não fosse por isso, hoje, o petróleo não seria nosso. Mas essa é uma outra história, coisa minha e do doutor Euzébio, homem “idialista” mas completamente desleixado. Uma alma elevada!… ele sempre trazia consigo uma orquídea junto com um buquê de versos. Ele que me apresentou Neruda:
Vem com um homem
às costas,
vem com cem homens nos cabelos,
vem com mil homens entre o peito e os pés,
vem como um rio
cheio de afogados.
Um rio cheio de afogados… Ah!… Ninguém lembra do dr. Euzébio! Mas eu lembro… era um obcecado: doutor Getúlio o ouvia, e ele, dr. Euzébio… humm fazia o que eu queria debaixo dos lençóis. Nojento. Descuidava do asseio: um horror! Dos tímpanos e das narinas daquela “alma elevada” brotavam enormes tufos de pêlos grisalhos. Um horror! Ai, que horror.
Mas o Petróleo é nosso, é ou não é? Essa merda brotou dos meus pesadelos direto para os sonhos do dr. Euzébio. Carca, mete a broca, Euzébio! O líquido negro e viscoso começou a brotar daqui (apalpa o púbis com raiva) desse meu ventre seco que nunca verteu nada diferente de aborto, luxúria, interesse e desdita. Isso mesmo, eu tenho orgulho! EU PARI CADÁVERES! PARI CAMUNDONGOS! PARI DUPLAS SERTANEJAS! Eu me fiz, e a história desse país escroto passa por aqui, e vocês querem saber de uma coisa? Cheira mal, muuuuuito mal”.
Aqui a peça na íntegra.http://www.cronopios.com.br/site/prosa.asp?id=4723
Tenham todos uma ótima semana e lembrem que o Tiririca tá dando um ótimo deputado.