Antes de qualquer crítica: no latim não existe o “v” minúsculo. Escrever “vis” em vez de “uis” é um barbarismo herdado da gíria litúrgica medieval. O adágio acima é de Barthélemy Prosper Enfantin (1796 – 1864), e está na carta enviada ao general francês Saint-Cyr Nugue onde diz: “Acho que o famoso ditado ‘se uis pacem para bellum’ [se quiseres a paz, prepara a guerra] é muito menos verdadeiro para o século 19, que ‘Si uis pacem, para pacem’ [se quiseres a paz, prepara a paz].”
Numa audiência na Comissão de Defesa e Relações Exteriores da Câmara de Deputados (vide) na última quarta-feira, o ministro Celso Amorim lembrou a necessidade do orçamento “sólido” para as Forças Armadas, para proteger o país da “cobiça de potências estrangeiras”. Se o orçamento deve ser sólido, esse tipo de raciocínio é líquido ou gasoso, e não merece nem ser analisado. Já no século 19, vários milhões de pessoas tinham percebido o cinismo desses argumentos, como o evidencia o autor da frase que serve de título a este artigo (o socialista francês Enfantin).
Nestes 150 anos, avançou-se algo (lamentavelmente, muito pouco) e hoje existem 28 pequenos países sem forças armadas (os dois maiores são Costa Rica e Panamá). A Costa Rica é o único na América Central e do Sul que conseguiu completar já 65 anos contínuos com democracia e respeito quase total ao estado de direito, e isso se deve unicamente ao fato de ter abolido suas forças armadas. (Não há nenhuma outra variável, nem econômica, nem social, nem política, que explique este progresso.)
Como ninguém pode predizer a evolução da sociedade humana, não podemos saber se algum país maior conseguirá seguir esse exemplo. Apenas sabemos que a proliferação bélica, nuclear ou convencional, acabará com os restos de vida civilizada que restam no planeta. É natural que muitas pessoas não se importem: afinal, isso tomará algumas décadas e é provável que as atuais gerações não estejam vivas.
O que, sim, vale a pena lembrar é que o problema do militarismo não é fático, e sim uma questão social e moral. Não podemos refutar as pessoas que afirmam princípios como os seguintes:
– “A guerra é boa e deve ser estimulada”
– “Prefiro a morte de toda minha família antes que alguém pise minha bandeira”
– “Matar é a mais honrosa das atividades humanas”, e outras similares
Para refutar uma afirmação, você precisa que essa afirmação se refira a uma situação objetiva, que possua certa racionalidade. Um desabafo místico de fanatismo pode produzir repulsa, mas não pode, num sentido estrito, ser refutado. Quem sente prazer pela morte e a destruição talvez possa ser convencido ou “curado”, mas não há nenhuma maneira de mostrar que o que ele falou é inverídico. É o mesmo problema dos que discutem se o verdadeiro Deus é o hebreu, o islâmico ou o cristão.
Entretanto, embora não possamos mostrar que essas manifestações de ódio e fanatismo sejam falsas, sabemos que elas causam repulsa à enorme maioria da espécie humana. Isso é muito fácil de conferir: pergunte a uma pessoa simples, bem intencionada, que ama seus amigos e sua família, em qualquer lugar do mundo, se está disposta a morrer e fazer morrer seus filhos para satisfazer a ambição dos políticos e o delírio dos militares.
Que, na prática, essas pessoas não conseguem é se opor às forças que os transformam em bucha da canhão e os levam como se fossem sacos de munições. Uma situação que é causada pela ignorância, o terror e a impossibilidade de organização em que os cidadãos são mantidos pelas gangues de psicopatas que vivem da violência. O absurdo da situação é tão grande, que não apenas soldados arrebanhados por seus chefes, como até (porém raras vezes), alguns de seus chefes, não resistem ao stress dos banhos de sangue e acabam cometendo suicídio.
A aceitação por parte da população da barbárie militar como se fosse algo normal é menor do que parece. Muito foi escrito sobre o clima de alienação e Emotionale Pest, de Wilhem Reich, sofrido pelo povo alemão, quando aceitou “defender” a Pátria, mas, apesar disso e da enorme repressão nazista, houve várias revoltas (Walkiria, Canaris, Weiss Rose, etc.). No Vietnã, muitos soldados preferiram o fragging, que arriscava suas próprias vidas, antes de se submeter às ordens homicidas de seus superiores. Nas novas guerras, como na do Iraque, não se recrutam soldados, mas se contratam lumpen ignorantes e fanáticos, que de nenhuma maneira são maioria nas sociedades industriais.
Ás vezes, se usa como exemplo o caso de Argentina, onde 90% da população apoiou a aventura militar nas Ilhas Falkland/Malvinas, mas é necessário ter em conta que o exemplo deste país é excecional. A Argentina sustentou durante 182 anos uma política radical de xenofobia e racismo, e uma militarização completa de toda sua vida pública. É o único país que não conseguiu anular o concordato que une o Estado à Igreja Católica.
O que faz o povo obedecer aos militares é uma patologia social (medo, insegurança, chauvinismo e, sobretudo, crenças místicas), porém, se não temos ainda remédio para essas doenças, o mínimo que se pode fazer é não estimulá-las.
A concorrência entre o militarismo argentino e o brasileiro, que começa por volta de 1830, acabou mal para a Argentina após a guerra de 1982 com a Grã Bretanha. Sem dúvida, o renascimento do belicismo austral será difícil, mas não é impossível, e a “explicação” do ministro Amorim de incorporar como aliados os países do Sul pode servir de pretexto. Se antes a Argentina dizia que se armava para evitar uma agressão do Brasil, hoje pode dizer que precisa armar-se para colaborar com o Brasil no combate à “cobiça estrangeira”. (Seria divertido perguntar aos demagogos por que compramos armas justamente dos países que nos ameaçam, já que isso reforça sua economia.)
No fundo, ninguém se arma para se defender. Gandhi foi ridicularizado quando disse que era necessário resistir ao nazismo com a oposição pacífica, pois, naquele momento, essa proposta era descabida. Mas a necessidade de defender-se da agressão do Eixo não teria existido se os países democráticos tivessem impedido o rearmamento da Alemanha quando ainda era tempo. No último momento, é verdade que só podia resistir-se ao nazismo com armas, mas a preparação bélica dos países democráticos exigiu tempo e esforço. Esse tempo e esforço poderia ter sido utilizado para impossibilitar o rearmamento da Alemanha e da Itália. Esse talvez seria um ato de violência, mas de intensidade infinitamente menor.
É um fato trivialmente óbvio que não existiria necessidade de defesa se não existissem agressores, e que “preparar a guerra para ter paz” é treinar os atuais defensores para tornar-se os agressores futuros. O ditado “se quiseres a paz, prepara a guerra” equivale a “se quiseres a saúde, estimula as doenças”.
Os movimentos de libertação do colonialismo nos anos 50 e 60 pelos países do 3º mundo são o melhor exemplo do paradoxo das políticas “bélico-defensivas”. Alguns países asiáticos e africanos conseguiram se subtrair parcialmente à dominação imperialista, e poderiam ter tentado construir sociedades realmente socialistas ou, pelo menos, democráticas. Essas esperanças acabaram quando os povos, que se tinham armado espontaneamente para obter sua liberação, formaram exércitos regulares, tornando-se ditaduras sangrentas e até potencias nucleares ou futuramente nucleares, como o Paquistão. O apoio ao militarismo “defensivo” na América Latina por alguns grupos que se autopercebem “de esquerda” é apenas um sintoma da crise das ideologias desde há décadas, e o lamentável oportunismo de muitos (não todos) dos que se dizem socialistas.
Como dizia Theodor Adorno, um dos fundadores da Escola de Frankfurt, a continuidade do fascismo se manifesta, após a Segunda Guerra, no chauvinismo e xenofobia dos países subdesenvolvidos.