Bajonas Teixeira de Brito Júnior*
O ótimo artigo de Ana Aranha publicado no site do Yahoo descreve as três fases da condenação do morador de rua Rafael Braga Vieira. Três passos bastante desencontrados com o grau de inteligência atingido pela sociedade brasileira hoje. A mera constatação dos abusos patentes cometidos pela justiça contra os fatos recobre com a suspeita de vingança a sentença dada a Rafael. Cito o artigo de Ana Aranha:
No laudo do esquadrão antibomba, a Polícia Civil apontou que os produtos tinham “ínfima possibilidade de funcionar como coquetel molotov”. Quando o caso chegou ao Ministério Público, as garrafas foram descritas pelo promotor responsável pela acusação como “material incendiário”. Até que o juiz Guilherme Schilling Pollo Duarte determinou que “uma das garrafas tinha mínima aptidão para funcionar como coquetel molotov” e condenou Rafael a quase seis anos de prisão.
A “ínfima possibilidade” inicial, que por si só descartaria a prisão preventiva como um abuso de poder, foi rebatizada pelo Ministério Público como “material incendiário” e pelo juiz Guilherme Schilling Pollo renomeada como “coquetel molotov”. É difícil não sentir uma certa vertigem ao acompanhar esse tipo de coisa, porque é um ato evidente de brutalidade. É preciso muito desprezo pela opinião pública, pelo simples bom senso, pela inteligência social, para distorcer tão abertamente os fatos mais óbvios. Do ponto de vista social e da justiça, essa mescla de barbaridade e desplante é o que normalmente se chama de arbítrio.
De fato, não é uma operação limpa, cirúrgica, fazer passar “ínfimo” por “mínimo” ou transformar uma “mínima aptidão” em um artefato explosivo. Isso é tão grosseiro que até é difícil encontrar um termo de comparação. Talvez tão grosseiro quanto essa criminalização de um inocente só mesmo o exato oposto: o descaramento com que as elites brasileiras praticam crimes seguras da perpétua impunidade. O crime do morador de rua, ao que tudo indica, foi exclusivamente o de estar no local em que mora, isto é, na rua.
Ao afirmar que o material apreendido com Rafael possuía “ínfima possibilidade de funcionar como coquetel molotov”, a perícia deixava claro que tal possibilidade, por ser remotíssima, não merecia ser considerada. Uma “ínfima possibilidade” significa o mesmo que quase nenhuma. Ao dizer que o mesmo material “tinha mínima aptidão para funcionar como coquetel molotov”, o juiz Guilherme Schilling não disse coisa diferente, já que “mínima aptidão” não pode ser algo muito diferente de “ínfima possibilidade”. No entanto, por esse passe de mágica, que transmutou o vácuo no vazio, julgou o juiz ter produzido uma realidade palpável.
Do ponto de vista do sentido e dos fatos, não trouxe nada que tivesse solidez de uma prova. Ao contrário. Mas por um apego jurídico ao fetichismo da linguagem, imaginou ao que parece que o público não se escandalizaria com essa enorme distância entre o quase nada e o muito. Um fato “ínfimo” ou “mínimo” é nada mais que algo desprezível. E ninguém pode ser preso, e menos ainda, preso por quase seis anos, por algo desprezível. Talvez a crescente confusão entre mínimo e máximo no Brasil tenha feito o juiz acreditar ingenuamente no poder de sua alquimia.
Utopia do mínimo
Frases entremeadas de “um mínimo de” se tornam cada vez mais comuns no país. Não faz muito tempo um site do governo federal exibia uma matéria com o título seguinte: “Anatel publica regulamento com padrões mínimos de qualidade para internet fixa”. Essa exigência do mínimo vem se tornando uma espécie de padrão ideal, de meta almejada em todos os setores da vida pública. O mínimo a cada dia que passa ganha mais a forma de uma utopia, de algo desejável e dificilmente exequível. Por esses dias afirmou o ministro da Educação, Aloízio Mercadante, que era obrigação do governo garantir um “mínimo de qualidade” na educação superior.
A utopia do mínimo, que provavelmente nasceu na última década, se ampliou até abarcar todas as coisas que dizem respeito ao convívio público. Atualmente é comum ouvir expressões como “garantir um mínimo de dignidade”, “assegurar um mínimo de qualidade”, “esperar um mínimo de respeito”, “merecer um mínimo de atenção”, “obter um mínimo de justiça” etc.
O sonho máximo do brasileiro, ao menos na esfera pública, se reduz cada vez mais a conseguir o mínimo. Talvez esse campo semântico mixuruca tenha permitido ao juiz Guilherme Schilling confundir o mínimo com o máximo. E acreditar mesmo que a sua “mínima aptidão” poderia ser acatada como indiscutível. Afinal, quem daria a mínima para uma pena máxima aplicada a um morador de rua? Mas os tempos estão mudando.
É possível que o sentimento de incongruência provocado pela discrepância entre os fatos, a pena aplicada pelo juiz, e o sofrimento que vem sendo imposto a Rafael Braga Vieira, já há meses jogado na masmorra, traga mais do que um mínimo de indignação às pessoas dotadas de sensibilidade alérgica ao grotesco. Aquelas mesmas que saíram às ruas não faz muito tempo.
*É doutor em Filosofia, autor dos livros “Lógica do disparate”, “Método e delírio” e “Lógica dos fantasmas” e professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes)