Soraia Costa
“Ou a gente começa a investir em educação ou o Brasil se desfará, ou melhor, continuará se desfazendo. O Brasil está se desfazendo. Até aqui adiantou fazer estrada, hidrelétrica, aeroportos. Mas a partir daqui não adiantará fazer nada disso. Isso não aglutina o Brasil. O Brasil só será aglutinado a partir de uma revolução na educação”.
Não precisa ser o mais obsessivo leitor do noticiário político para perceber que somente um, dos atuais presidenciáveis, poderia ser o autor das afirmações acima: o senador Cristovam Buarque (PDT-DF), 62 anos, ministro da Educação do governo Lula entre janeiro de 2003 e janeiro de 2004, ex-governador do Distrito Federal (de 1994 a 1998) e ex-reitor da Universidade de Brasília (entre 1985 e 1989).
A um eleitorado às voltas com mil problemas e ávido por soluções imediatas, o ex-petista oferece um programa de transformações de longo tempo de maturação, todo ele baseado na reforma educacional, e pouquíssimas promessas de curto prazo.
Enquanto outros candidatos defendem a redução dos juros como simples ato de vontade do presidente da República, ele adverte: “Tem que diminuir os gastos para sinalizar o equilíbrio fiscal e reduzir os juros”. Evita ainda fazer promessas em relação a questões como a redução da carga tributária. “Não podemos continuar com essa carga tributária, mas não podemos reduzi-la leviana e apressadamente”, disse em entrevista ao Congresso em Foco.
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Doutor em Economia pela Sorbonne, de Paris, e engenheiro mecânico formado pela Universidade Federal de Pernambuco, Cristovam fala como professor (ofício que exerceu durante anos na UnB). É claro e didático. Mas, com a herança do técnico que entre 1973 e 1979 foi funcionário do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em Washington. Empacado segundo as pesquisas em 1% das intenções de voto, resiste contra a tentação do populismo e das promessas fáceis.
Metas para a reforma agrária? “Prefiro não me ater a números, pois isso depende de muitas coisas. Depende da Justiça e de recursos, por exemplo. Eu só assumo compromisso com aquilo que sei que dá para fazer: a educação”, afirma, declarando ainda que é preciso tornar o MST "desnecessário".
Também ousa falar em mudanças no programa de Lula de maior prestígio popular, o Bolsa Família. Defende a controvertida política externa do atual governo. E tampouco se importa de ser conhecido como o “candidato de uma nota só”, já que todas as suas propostas passam pela educação. Pelo contrário, critica os adversários por terem muitas notas, mas estarem “fora do tom”.
Seguem os principais trechos da entrevista que ele deu ao Congresso em Foco.
O senhor fala muito que resolver o problema da educação é a melhor maneira de fazer o país crescer. Como será feita essa mudança?
A idéia central é federalizar a educação básica no Brasil. Quero fazer com que a educação básica não seja uma preocupação e uma responsabilidade apenas do prefeito, no ensino fundamental, e do governador, no ensino médio. Temos que criar padrões mínimos para todas as escolas do país de salário e formação dos professores, edificação, equipamento e conteúdo. Atualmente, os salários dos professores, a qualidade de ensino e a estrutura são diferentes. Queremos fazer com a educação assim como funcionam as agências do Banco do Brasil. Não importa em que cidade a pessoa esteja, a qualidade de atendimento é a mesma e os equipamentos mínimos são idênticos. Há 22 mil escolas no Brasil sem água, sem banheiro. Outras 27 mil não têm luz elétrica. Isso não pode acontecer. Tem que ter um padrão mínimo de qualificação. Hoje, 52% das crianças do Brasil não sabem ler na 4ª série. Tem que ter uma lei que diga: toda criança tem que saber ler antes dos oito anos. Todo aluno tem que terminar o ensino médio. Agora isso não é de um ano para outro. Vai levar dez, 12 anos. Toda escola tem que ter horário integral: vai levar 15 anos. Mas tem que ter um padrão nacional e pra isso é preciso ter uma lei de metas. O Brasil tem metas para quase tudo, mas para a educação não tem. E tem que criar a Lei de Responsabilidade Educacional. Com ela, o prefeito precisaria cumprir as metas ou ficaria inelegível, como acontece com a Lei de Responsabilidade Fiscal.
Quanto se gastará com isso?
Para que tudo isso funcione, é preciso que o governo federal gaste R$ 7 bilhões a mais por ano do que gasta hoje.
E de onde viria este dinheiro?
Esse dinheiro sairia do orçamento, do mesmo lugar de onde sai o meu salário de senador. Por que para o salário do professor não se consegue achar dinheiro e para as outras categorias sim? Esses R$ 7 bilhões correspondem a 1% do orçamento da União. Mas se não quiser falar nisso, é simples. Basta cumprir a Constituição, que diz que o governo federal tem que aplicar 18% em educação. Só que antes de calcular os 18% ele tira a Desvinculação das Receitas da União (DRU), o que corresponde a R$ 6,4 bilhões. Então como é que pode R$ 6,4 bilhões a menos? Isso já resolveria o problema. O que a gente precisa começar a perguntar é quanto vai custar não fazer isso. Quanto vai custar em cadeias que a gente vai precisar construir? Porque boa parte da criminalidade vem da falta de oportunidades para muitos jovens. Quanto vai custar na ineficiência que vai arrastando o país cada vez mais para trás? O Brasil é um país que se orgulha de exportar soja e não chips. Por quê? Por causa da educação que não fez. É por isso que a gente exporta soja, porque a terra não precisou de escola. Para fazer chips, precisa de muita escola.
O senhor já tinha essas propostas quando assumiu o Ministério da Educação? Por que não conseguiu colocá-las em pratica?
Claro que consegui. Mas isso leva 15 anos e eu fiquei 12 meses. E ainda assim, com orçamento importado. A gente, quando assume o governo, recebe o orçamento do governo anterior. Mesmo assim, comecei essa federalização. Comecei com um programa chamado Certificação federal do professor. A gente ia fazer um concurso federal para todos os professores. Por que não foi feito? Porque os professores disseram que antes do concurso queriam fazer um curso. Aí para fazer o curso tivemos que selecionar 20 universidades e quando foi começar o curso, já não dava mais, porque deixei o ministério. A gente começou o horário integral em 29 cidades em um projeto chamado Escola ideal. Escolhemos as cidades, mas ia levar dois anos para que a implantação estivesse completa. O projeto parou em 2004. Comecei o programa de erradicação do analfabetismo. Compramos os equipamentos para o projeto Escola interativa. Tudo isso começou, mas leva de dez a 15 anos e eu fiquei 12 meses.
Se eleito, o que o senhor pretende fazer para diminuir a criminalidade e a insegurança da população?
Em longo prazo, a solução é escola, não tem jeito. Uma coisa é trazer segurança para agora e outra é construir a paz para daqui a dez anos. Se a gente apenas trouxer segurança agora e não construir a paz, daqui a dez anos vai ter mais gente presa do que solta. E não é isso que queremos. O problema do Brasil hoje não é violência, é guerra civil. E guerra civil quem controla não é o governo estadual. O governo federal tem que trazer esse problema para si, criando um Ministério da Segurança Pública. Tem que unificar as informações para criar um banco de dados em todo o país. Quando um bandido muda de estado, as pessoas da cidade para onde ele foi não sabem que ele é bandido. Isso é um absurdo. É preciso mudar o sistema presidiário para separar os bandidos de acordo com a pena e o crime. Colocar um menino que bateu carteira junto com um assassino é colocá-lo em uma escola de criminalidade. E uma parte que eu acho fundamental na “segurança já” é incorporar um milhão de jovens, entre 16 e 20 anos, no serviço civil militar. São jovens que estão exatamente na margem de risco de caírem na criminalidade. É preciso tirá-los das ruas e colocá-los para aprender um serviço, fazer ginástica, ter noções de civismo. E isso nós conseguiremos com serviço civil militar. A gente põe os jovens durante seis meses para fazer o serviço. Só que isso não se consegue nos primeiros meses de mandato, até porque o orçamento que a gente vai ter será herdado.
A entrada desses jovens no serviço civil militar seria obrigatória?
Não. O serviço não seria obrigatório. Os jovens serão remunerados. Oferecendo salário, eles vêm. Os meninos não querem ficar na rua jogando baralho e bebendo, como a gente vê tanto hoje na periferia. Com o serviço militar, eles adquirem um ofício, fazem amigos. Isso tem um gosto lúdico também. Isso sim daria uma redução na criminalidade.
O senhor pretende construir mais presídios?
Construir mais presídios pode ser necessário até por uma questão de direitos humanos. Não podemos colocar os bandidos, por mais perversos que eles sejam, como se fossem sardinhas. Agora, só construir cadeias não resolve. Se construirmos uma cadeia e 200 escolas, pode ser que a gente comece a resolver o problema.
Agora, com relação à geração de emprego e renda. Como o senhor pretende reduzir o desemprego e criar postos de trabalho de qualidade?
A gente tem que perceber, mais uma vez, que só vai resolver o problema do desemprego com educação. As pessoas se esquecem disso. Quando eu digo que educação é tudo, as pessoas dizem que eu tenho uma nota só, mas é a única nota que harmoniza as outras. Os outros estão falando em muitas notas sem harmonia, fora do tom. Educação é o único caminho para resolver em médio prazo o problema do emprego. E já? Já, o emprego vai ter que ser precário. Não vai ter pleno emprego para pessoas que não aprenderam a ler, que não estudaram. Hoje, para qualquer coisa, é preciso ter o ensino médio. O que proponho? Um grande programa de emprego para pessoas carentes e pobres para elas fazerem o que precisam. Como, por exemplo, consertar a escola do filho. As escolas estão lá depredadas e as pessoas estão desempregadas. É só colocar o desempregado da casa vizinha para consertar a escola. Reflorestaram a margem do São Francisco. Fizeram uma operação tapa-buraco que usou só máquinas. Poderiam ter usado mais mão-de-obra. A gente pode empregar as pessoas para um grande programa de água e esgoto. E de onde sairia esse dinheiro? Da água e do esgoto, do Ministério das Cidades. E de onde sairia o dinheiro para outros empregos? Da própria transformação do Bolsa Família, que passaria a ser entregue para mulheres e homens que não têm filhos, contratando-os para que trabalhem. É possível até contratar por menos tempo, não o ano inteiro, mas pagar um salário mínimo. É melhor pagar um salário mínimo durante três meses para uma pessoa fazer algo do que pagar R$ 63 por mês o ano inteiro para quem não faz nada.
E as pessoas com filhos? Deixariam de receber o Bolsa Família?
O Bolsa Família foi unificado e incorporou o Bolsa Escola, que é para crianças que estudam, com o vale-gás e o Bolsa Alimentação. Então hoje quem recebe o Bolsa Família não é só quem tem filho. Quem tem filho eu proponho que volte a receber o Bolsa Escola, administrado pelo MEC. Com um valor melhor e com o poupança-escola, que criei no meu governo no DF. Com o poupança-escola, além de pagar à família para que a criança estude, a criança que passar terá dinheiro depositado na caderneta de poupança no final do ano. Esses recursos só poderão ser retirados quando a criança completar o ensino médio. E aí perguntam: de onde vai sair esse dinheiro? Gente, é tão pouquinho que é até uma vergonha perguntarem. Mas é muito mais barato isso do que os gastos com repetência. Na hora em que implantarmos os programas, a repetência cairá. E vou mais longe. O aluno demorará a receber o dinheiro e, quando for retirar, ele já estará ganhando tanto, depois de concluir o ensino médio, que o dinheiro pago em impostos compensará o que foi gasto com a poupança.
Os gastos com impostos são uma das maiores reclamações da população. O senhor pretende reduzir a carga tributária?
Não podemos continuar com essa carga tributária, mas não podemos reduzi-la leviana e apressadamente. Não podemos, em nome de reduzir uma carga tributária absurda, fechar escolas e hospitais, mandar os policiais para casa, como se faz hoje com o exército, que não tem recursos para comprar comida e manter os soldados no quartel. Se a gente fizer isso com a polícia, a criminalidade aumenta. Então não adianta reduzir a carga fiscal e deixar o bandido na rua. Tem que ser um processo longo. Como? Primeiro, trazendo mais eficiência. Reduzindo uma certa quantidade de cargos comissionados que a gente tem. Criando a Lei de Responsabilidade Educacional, vamos fazer muito mais coisa gastando menos. Hoje, é considerado um bom prefeito aquele que gasta muito e não o que faz muito. Tem que ter um programa de redução dos gastos para só depois ir fazendo a redução da carga fiscal. Além disso, quando a gente começar a reduzir os gastos, sinalizamos para o mercado financeiro o equilíbrio das contas. Com essa sinalização, a taxa de juros começa a cair. Quando a taxa de juros cair, o país cresce. Hoje, grande parte da carga fiscal é para pagar juros. Mas, ao mesmo tempo, se a gente disser que não vai pagar juros, se a gente fizer uma moratória, esse país quebra. Da mesma maneira que se a gente disser que não paga policial, esse país arrebenta. Se a gente disser que não paga os professores, esse país não muda. Tem que diminuir os gastos para sinalizar o equilíbrio fiscal e reduzir os juros. Com a queda dos juros, caem os gastos, caem os impostos.
Quais são suas propostas para a saúde?
Na saúde, precisamos de duas coisas. Primeira, fazer uma radicalização no programa de água e esgoto no país. Isso irá gerar uma porção de empregos. A segunda é a criação de pontos de saúde em cada escola. Existe posto de saúde, existe hospital. A minha proposta é colocar uma etapa anterior a estes dois. É uma coisa pequenininha, mas que ajuda a cuidar da saúde, a receber e a encaminhar as pessoas. Vou também ampliar o programa Saúde em casa, que fiz no meu governo no Distrito Federal. Quero levar o Saúde em Casa, de fato, para o país inteiro.
Haverá mudanças na política externa e no pagamento da dívida?
O que proponho não afeta em nada as relações com os outros países. Continua tudo normal. Não vejo por que a gente fazer mudanças dramáticas nessa área de política externa. Tem que continuar a ser uma política levada pelo Brasil. A sorte é que aqui o Itamaraty tem uma política de Estado. Entra governo, sai governo, os ajustes são pequenos. Não tem por que mudar. A dívida externa não tem o que fazer de diferente do que está sendo feito. Até porque o problema maior não é a dívida externa, mas a dívida interna. E a dívida interna tem que ser reduzida pela redução de gastos.
O que o senhor pensa sobre a reforma agrária?
Precisamos virar a página da questão agrária. Temos que fazer o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) ser desnecessário. Não dá para termos no século XXI um movimento como o do MST. É preciso reunir o MST, o Judiciário, o agronegócio e os pequenos produtores e discutir como virar a página do tempo das capitanias hereditárias. Prefiro não me ater a números, pois isso depende de muitas coisas. Depende da Justiça e de recursos, por exemplo. Eu só assumo compromisso com aquilo que sei que dá para fazer: a educação.
Qual será a primeira atitude do senhor ao chegar ao Palácio do Planalto?
Vou chamar todas as lideranças nacionais dos partidos e dizer que nós ganhamos a eleição para fazer uma revolução que custa apenas R$ 7 bilhões por ano. Não vai desapropriar nada de ninguém, não vai desarticular nada. Vou dizer: “A gente precisa de vocês. Não vai dar para fazer essa revolução em quatro anos, a gente precisa de 20. E nem vai dar para ser só com o meu partido, precisa de todos. Vamos fazer isso juntos, gente”. Como Coréia, Irlanda, Espanha fizeram. Vamos fazer uma grande “concertação”, como diz o meu vice-presidente, Jefferson Peres (senador do PDT-AM). Porque ou é um programa de todos ou não vai dar certo. A gente vai gastar R$ 7 bilhões a mais e isso aqui é uma unidade de todos nós. De onde sai esse dinheiro a gente briga, vamos brigar de onde é que sai, mas a gente não briga que esse dinheiro tem que aparecer. Essa será minha primeira medida.
A proposta do senhor é retirar esse dinheiro de outros áreas, isso não pode apenas transferir o problema?
Se esse dinheiro vai prejudicar outros setores, isso significa que os outros setores também prejudicaram a educação. Isso é correto? Prejudicar a educação? Para mim, a educação é fundamental. E esse dinheiro pode sair de muitos lugares. O Congresso mesmo, de onde sai o meu salário. Por que a gente custa R$ 5 bilhões? Será que não é possível segurar 10% disso? Seriam R$ 500 milhões. A Justiça gasta R$ 15 bilhões. Não dá para segurar 10%? Só aí já somariam R$ 2 bilhões. Ou a gente começa a investir em educação ou o Brasil se desfará, ou melhor, continuará se desfazendo. O Brasil está se desfazendo. Até aqui adiantou fazer estrada, hidrelétrica, aeroportos. Mas a partir daqui não adiantará fazer nada disso. Isso não aglutina o Brasil. O Brasil só será aglutinado a partir de uma revolução na educação.
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