Maximilian Hehl (1) (que não se chamava nem Maximilian nem Hehl), meu tatatataravô, tinha 22 anos quando deixou Berlim por volta de 1855 zarpando pela cidade livre de Dantzig. Jovem, louro e solitário, uma capa cinza de oleado sobre os ombros, veias azuis inchadas sob a fina pele branca dos punhos agarrados às cordas do velame do cargueiro em cujo porão depositara os dois caixotes que eram tudo o que possuía o rapaz que não precisava de coisa alguma além da sua, a sua alma furiosa.
Porque a solidão não era o bastante, nem o desamparo, a juventude, a indiferença pela paisagem que engolia, a infinita trilha das águas da qual parecia estar à frente, ele não a via, apenas engolia com feroz urgência obstinada, tão alheio à aventura da viagem quanto ao seu destino, indiferente ao cotidiano fastidioso das famílias amontoadas no convés, devorando presente, passado, futuro (o que o inviabilizava como imigrante) mas ainda não era o bastante, por isso a cidade livre de Dantzig entrava na sequência, como o desfecho natural da sequência abominável, o derradeiro insulto.
Por que o moço Maximilian não partiu de Hamburgo, mais próxima à Berlim e à porta aberta, a que restara, aos que fugiam da Alemanha naqueles dias sombrios? Silencioso, obstinado, escolheu o caminho mais longo ou o mais improvável. Desafiou o destino e não foi detido: a sinistra marca em seu rosto parecia protegê-lo, como a aura de um leproso ou de um louco a quem se franqueiam as fronteiras do mundo, sem que lhes peçam sequer o passaporte, nada que os retenha diante dos nossos olhos, nada para impedi-los de estar em movimento, sempre para frente, para diante, para bem longe, desde que não voltem.
Atravessou as geladas águas do Báltico, contornando a costa dinamarquesa até alcançar o Atlântico, rumo à Espanha e Portugal, à ponta extrema de portos estranhos que para ele já não pertenciam ao mundo. Desceu bordejando a escaldante costa sul-americana, sem nunca descer à terra, indiferente aos rumores da tripulação, aos murmúrios das matas para além da arrebentação: contava inversamente os trópicos.
Mansamente, foram retornando as aragens temperadas, restituindo ao clima as necessárias condições atmosféricas para que um homem pudesse viver e trabalhar com alguma dignidade. Finalmente, o cargueiro lançou âncora em Santos e ele desceu com a capa, os dois caixotes já meio corroídos pela maresia, inchados de livros e ferramentas, aos quais ele restituiria as condições de uso. Despontava o ano de 1856 e ele julgou ser primavera, mas lhe disseram “outono” e ele agradeceu, fixando aturdido o verde mar sem ameaças, sem esperanças.
Pensou: aqui, não só a paisagem, o tempo também se inverte, mas aqui também sou intruso, sorriu sem amargura, enrolando o cigarro: onde o cais do mundo? O direito de cidadania? E pensou: case-se com uma mulher da terra. A terra prometida é o corpo da mulher amada. Mas quando atirou o cigarro na água, já não sorria: sim, aquela fora uma bela frase. A razão decidira-o, mas algo ressocado em seu espírito, algo como o centro gelado de uma guerra sem armistício sabia que não, que para ele não, para ele nunca.
E nesse estado de calamitoso orgulho, ele galgou a serra num dos trens da Estrada de Ferro Inglesa e entrou na cidade de São Paulo. Cinco anos depois, já casado com Ana Duarte de Sá, cujo dote incluía a chácara em Santo Amaro, o antigo Bairro Alemão, instalou na face leste o galpão onde exerceu o ofício de ferreiro e onde, segundo a lenda, teria projetado as primeiras máquinas de lavar patenteadas no Brasil.
PublicidadeVictor, meu avô, (objeto de outra crônica) foi o último dos onze filhos gerados pelo turvo Maxilimian que, aqui, desaparece da crônica familiar e do mundo, mesmo porque não há vestígios de sua morte – nenhuma lápide, nenhuma cruz – embora da sua vida persista o registro do Departamento de Patrimônio Histórico do Município de São Paulo de 24 de agosto de 1861, consignando a Maximilian Hehl o assentamento duma banca de ferreiro na Rua de Santo Amaro.
(1) In Caim. Rio, Record, 2006