Tavares Dias*
Abrem-se as cortinas. Pernas entrelaçadas em espúrio conúbio, surgem no proscênio, impudicos e euforizados, o milagre econômico e os anos de chumbo. O eterno Tim Maia ainda nem vocifera contra, mas já vale, sim, dançar homem com homem, mulher com mulher e coisa com coisa, haja vista o verde-oliva dos uniformes pendurados no varal de Latinoamérica num cheek to cheek com o tricolorido da casaca do Tio Sam, este estendido, feito assombroso espectro, por sobre “la pobre inocência de la gente” (“Sólo le pido a Dios”, Vitor Garcia).
A incipiente classe média tapuia, recém-apresentada ao fusca, ao supermercado e à eletrola, ainda bolera dois-pra-lá-dois-prá-cá ao som de Românticos de Cuba, revira os olhinhos com Nat King Cole e com o nosso Dick Farney.
O intelectual xavante e o caipira norte-americanos já ouviram rumores de um surpreendente movimento, havido no Carneggie Hall, pilotado por terceiro-mundistas que não aceitam mais ser vistos como exóticos; já ouvem falar de Hélio Oiticica. Há um país bossa-nova, do lado de baixo do Equador, onde se cometem atrozes pecados e onde boi voa; é lagoa onde jacaré nada de costas e macaco bebe água de canudinho. Mas é lugar também de João Gilberto, de Tom Jobim e de Vinicius de Moraes, e de tanta gente mais.
Mas chega de saudade. Entretecida de maracatus do Recife (por onde andou, e donde muito bebeu, a sede pesquisadora de Mário de Andrade), do samba de roda da Bahia, do Rio e do Brasil enfim, das toadas mineiras, do som do país todo e de tudo que se vê em cheiro, em sinestesia, em ginga, cor, respiração, atavismo e tanto mais, em Macunaíma, em Cobra Norato, na saga euclidiana de Canudos, nas veredas do grande sertão, na saparia de Bandeira em 1922, no pau-brasil e na antropofagia oswaldianos, na casa grande e na senzala, está sendo gestada uma rebrasilidade manifesta.
No lado plúmbeo de Pindorama, é um tempo de ser pendurado em pau-de-arara ou de desaparecer por obra e desgraça dos poderosos. A gente aqui do andar de baixo, que não tinha nem a sagacidade nem o nome respeitável de Pedro Aleixo, tinha sim, um medo lascado tanto de general quanto do guarda da esquina.
Por isso, vozes presentes em muitos palcos e em senhoria de variada estética chamam a si, antenas de suas raças, o dever de pôr o dedo na ferida e mostrar que, sim, ela é fétida.
Dentre essas importantes vozes, surge uma lufada de ar purificado chamada tropicália, trazendo a geléia geral de Torquato Neto e Gil mas também um outro artista baiano, entre tanta gente competente que compôs aquele movimento: Caetano Veloso, músico portador de uma tal alegria alegria que de tão grande já ecoava no “instante-já” (essa maravilhante invenção de Clarice) de sua apresentação como significante.
Pois bem: Caetano Veloso chega bem a tempo de dar um chega-pra-lá em setores mais “à esquerda” da música brasileira que se recusam a aceitar a presença de guitarras elétricas na nossa música. Condensando-se as imagens nos caleidoscópios de Chronos e de Kairós, é um tempo também de festivais, da consagradora vaia, do espanto causado pelos mutantes roqueiros brasileiros que já tentam pôr e manter a boca no mundo. Tempo de prisão e de exílio.
“Recuso-me a folclorizar o meu subdesenvolvimento”, troveja pois o poeta, guitarra pendurada no pescoço. A frase toca consciências, gesta a semente do bom debate. Inaugura “um monumento no Planalto Central do país.”
Agora, cara leitora e caro leitor, pisa firme junto comigo no acelerador do tempo, aí. Já estamos em plena era do individualismo exacerbado, do hedonismo, do sucesso das colunas e programas de rádio e TV que só tratam de futilidades (só há produto porque há mercado, senhores e senhoras da educação e da cultura, da arte e do mercado de arte). O governo do país já conseguiu a proeza de desmoralizar o escândalo, pela repetição.
Ao longo de todos esses anos, Caetano Veloso parece nunca ter se furtado ao debate. Amadurece, torna-se intelectual de peso, pensamento imprescindível na discussão de nossas origens e rumos enquanto aspirantes a deixar de ser um bando e virar enfim uma nação. E isso é ótimo.
Mas seria maravilhoso também se parte da mídia precisasse menos de ídolos, fosse menos baba-ovo e tivesse menos necessidade de sair por aí procurando lead de boca em boca pra tanta matéria ruim, fenômeno de há muito registrado pela constatação de que o noticiário da maioria absoluta dos veículos de comunicação de edição diária no mundo inteiro não tem densidade suficiente para justificar a frequência de sua circulação. Quanto mais em tempo real…
Mas o que fazer, se nossa sociedade midiática é cevada pela força de seus departamentos comerciais e acha que fica meio mal desativar as redações de uma hora pra outra, assim? O humorista Leon Eliachar, que se dizia cairoca, por ter nascido no Cairo e se criado no Rio, já dizia, nos anos 70 (em O homem ao quadrado), que os programas de TV só existem porque os departamentos comerciais das emissoras não são capazes de produzir anúncios comerciais em quantidade suficiente para ocupar todo o espaço. Faz quase 40 anos.
OK, voltemos ao Caetano, que acaba de chamar Lula de analfabeto, numa entrevista a um jornal paulistano, envolvendo também, num só raciocínio, Barack Obama e Marina Silva.
Décadas depois de o artista baiano recusar-se a folclorizar o próprio subdesenvolvimento, insisto em dizer que a música de Caetano Veloso (e de muitos outros artistas) já fez mais pela imagem do Brasil do que a maioria de nossos políticos e empresários.
Caetano (assim como Jobim, Barroso, Gonzagão, Gil, Djavan, Ivan Lins, Noel, Jobim, Chico, Jorge Ben e outros que irão aqui compor a grande e habitual lista das injustiças a que a falta de espaço, e de conhecimento, condena o redator) ajudou a colocar o país nos mapas da identidade cultural e do mercado de artes.
Mas ninguém é brilhante todo dia. Pelo menos não o suficiente para discorrer com profundidade acerca de qualquer assunto. Inclusive sobre o que ser analfabeto, sobre falar mal ou falar bem, sobre o que é a norma culta da língua, sobre o que são dialetos, o que é idioleto (e mesmo ainda que o Caetano tenha domínio sobre esse universo, conforme parece ter, ele não seria a pessoa mais indicada para analisar o assunto). Mesmo que goste de ser acionado, de ser procurado, que tenha aprendido a gostar disso, porque só uma celebridade pode dizer, se puder e quiser, que tipos e que quantidades de substâncias seu organismo fabrica diante da demanda de mais e mais uma vez chegar ao público que com ele estabelece há tantos anos uma troca afetiva.
Já não preciso de ídolos, faz tempo. E isso é uma coisa boa, porque permite que a gente veja a pessoa inteira, tanto quanto nossa percepção o consiga, à distância (e a distância é útil para manter o mito, para quem dele necessite; haja vista a beleza do verso, de quem mais, senão de Caetano?, em Vaca Profana: “De perto ninguém é normal”).
Não precisar de ídolos serve também para desobrigar a gente de gostar de tudo que a pessoa que a gente admire produza.
Gosto de arte. Boa arte, com toda a subjetividade aí cabível. Pelo mesmo critério, gosto de ouvir músicas boas. E muitas delas são de Caetano Veloso, a quem tenho como um de nossos maiores mestres, em todos os tempos, talvez um dos maiores do mundo, na sua praia.
Ora, revendo-se outros embates de Caetano com setores do jornalismo e também situações envolvendo outras pessoas, de imagem pública ou não, artistas ou não, inevitável constatar: o diabo é que a mídia, tanto quanto qualquer setor brasileiro que devesse ser majoritariamente crítico, é um segmento formado em sua grande maioria por pessoas cujo raciocínio é da profundidade de um pires, se muito.
Se um editor precisar de uma manchete pra dar uma esquentadinha no material (não estou dizendo, nem clara nem veladamente, no texto nem no subtexto, que teria sido isso a gênese do recente imbróglio e nem cometendo a injustiça de desconhecer a competência da autora da entrevista nem do editor da matéria, mas apenas comentando uma obviedade, genericamente), não será muito difícil pra ele, dependendo de sua relação com a ética, escolher um entrevistado polêmico, de temperamento sanguíneo, que ame o debate, e mandar um repórter sagaz pra dar-lhe umas três cutucadinhas.
O lead rola mole. Manchete garantida, apagar a luz, ir pra casa. E, caso se trate de entrevistado sem experiência no trato com a mídia, o repórter que se vire pra explicar que definir o título é uma das prerrogativas do editor etc. Se tiver sorte, ganha uma notinha de rodapé e toca o enterro.
E isso também não é novidade pra qualquer velho jornalista.
Agora, com licença, com gratidão pela atenção, é minha hora de ouvir “Trem das cores”, onde o irrequieto, brilhante, inovador e contraditório Caetano Veloso dá, a meu modesto ver, uma de suas mais brilhantes aulas. Sem nem meia pisadinha na bola.
*Tavares Dias, 58, é leitor amadoramante e viciado dependente de escrevinhações. Frequenta o E.A. (Escritores Anônimos) desde a juventude. Despontou para o anonimato em 1995, já tendo perpetrado cinco livros, entre poesia, reportagem, conto e crônica. Quando em surto, ameaça cometer ainda outros.
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