Rudolfo Lago*
No último artigo, comentei aqui o peso da ausência do debate sobre o governo Lula numa campanha de reeleição. Numa campanha desse tipo, o que está em jogo é o governo de quem estar no poder, se é ou não merecedor de uma segunda chance. Se esse debate não acontece, fica essa eleição sem sentido.
Por isso, é frouxa, sem emoção. Mas a verdade é que Lula é, de todos, o que menos deve ser responsabilizado por isso. Em termos de estratégia, é evidente que ele ganha quanto menos discussão houver sobre o seu governo. Assim, é claro que não deve ser ele a pessoa a puxar esse debate. Por que ele sairia por aí a justificar ou esclarecer os seus defeitos, sem que ninguém o provocasse a fazer isso? A verdade é que Geraldo Alckmin, do PSDB, fugiu desse debate. Incapaz de estabelecer de forma clara onde e como seria diferente, Alckmin deu a Lula as condições para se manter tranqüilo na dianteira.
Boa parte das inserções do candidato tucano nos horários comerciais dedicou-se a garantir que Alckmin, se eleito, manterá o Bolsa Família. Ora, ainda que ele afirme que aprofundará alguns pontos e aperfeiçoará outros, o que, nesse caso, pode motivar o eleitor a trocá-lo por Lula, se o Bolsa Família é um programa formulado e concebido no atual governo?
O Bolsa Família é um limão que Lula soube muito bem transformar em limonada. É fruto de um improviso que a intuição do presidente – um dos principais traços positivos da sua personalidade – produziu para evitar o que se prenunciava como um desastre: o fracasso do programa Fome Zero. Vale contar uma historinha sobre esse episódio.
No domingo da votação do segundo turno em 2002, Lula reuniu-se com a cúpula da sua campanha em um hotel próximo à Avenida Paulista para acompanhar a apuração e o resultado final. Na famosa avenida de São Paulo, uma multidão se aglomerava para a comemoração da sua vitória. Assim que foi proclamado vencedor, depois de uma primeira entrevista à TV Globo, Lula juntou em um auditório petistas e jornalistas para o primeiro pronunciamento. Foi ali que disse que o Fome Zero era a prioridade do seu governo. E que a sua missão seria fazer com que todos os brasileiros tomassem café-da-manhã, almoçassem e jantassem.
Sentado na primeira fila, José Graziano tremeu. Ele seria o ministro responsável por fazer com que essa prioridade desse certo. Acontece que o programa de segurança alimentar que ele tinha formulado não se destinava a ser prioridade do governo. Tratava-se de projeto piloto, que deveria começar de forma experimental em algumas cidades e regiões e ir se ampliando ao longo do governo. Não havia estrutura para algo de âmbito nacional desde o início.
Anunciado por Lula, o programa virou febre. A população se engajou. Empresas queriam doar. Giselle Bündchen entregou um colar de diamantes para o programa. E Graziano, pego de surpresa, não sabia o que fazer com aquilo. Acabou obrigado a pedir às pessoas que diminuíssem seu entusiasmo. Quando Lula resolveu fazer a primeira reformulação de seu governo, percebeu que o Fome Zero, na forma inicialmente concebida, não emplacaria. Afastou Graziano e criou o Ministério da Ação Social. Aproveitaria programas já tocados desde o governo anterior. A sacada foi reunir todos esses projetos, que estavam espalhados pelos vários ministérios. Com isso, otimizou cadastros e pôde ampliar o atendimento.
O governo chega a um total de 11 milhões de famílias atendidas. Numa média de quatro pessoas por família, estamos falando de mais de 40 milhões de pessoas. Nenhum candidato com pretensões de vencer as eleições pode desprezar isso. Ainda mais, no caso de Alckmin, se o programa é resultado da reunião das iniciativas que já eram tocadas no governo anterior, de Fernando Henrique Cardoso.
Se Lula tem acertos a mostrar na área social, restaria a Alckmin dois caminhos: atacá-lo pela via da ética, onde o presidente, de fato, não cumpriu a promessa de mudança nos padrões de relacionamento com partidos e políticos; ou na via do gerenciamento, confuso e desestruturado no governo Lula. O primeiro poderia ser eleitoralmente interessante. Alckmin é pressionado por alguns a tomá-lo, mas hesita. Primeiro, porque a escolha da baixaria pode ser um tiro pela culatra, poderia vitimizar Lula. Segundo, porque Alckmin sabe que nem seu partido nem o PFL têm muita autoridade para tratar disso: foi numa reação a eles e a suas práticas que Lula foi eleito. Fica, então, numa discussão estéril, difícil de demonstrar na prática, de que teria maior capacidade gerencial para administrar o país. Difícil demais convencer algum eleitor por aí.
Assim, o que se viu na primeira semana foi uma rapsódia em azul. Lula e Alckmin fizeram praticamente o mesmo programa eleitoral. Lula mostrou depoimentos de pessoas que melhoraram de vida com seus programas sociais. E Alckmin rebateu também apresentando casos de pessoas que se tornaram felizes com os programas sociais do seu governo em São Paulo. Ambos abusando da cor azul nos cenários. Ambos usando ritmos nordestinos nos seus jingles. Com dois candidatos iguais pontificando na disputa, é natural que o eleitor fique com Lula. Entre o certo e o duvidoso, opta pelo que já conhece. É como a velha regra do trânsito: "Na dúvida, não ultrapasse".
* Jornalista há 20 anos, Rudolfo Lago, Prêmio Esso de Reportagem em 2000, foi repórter político de algumas das principais redações de Brasília. Hoje, é editor especial da revista IstoÉ e produz o site http://www.rudolfolago.com.br/.