O mundo discute, afinal, o que foi aceito como caminho de avanço tecnológico inquestionável: a produção de energia nuclear vale os riscos que comporta?
As 12.157 mortes oficializadas no Japão, em 4/4/2011 (estatística que dolorosamente crescerá, pois são 15.496 os desaparecidos), derivadas de tsunami e terremotos, nos exortam também a refletir sobre os problemas na usina seguríssima de Fukushima, que assustam a humanidade. Solidariamente, e em memória de quem pereceu, está no sofrimento ou ao alcance da radiação letal, arrisco-me a elencar algumas questões que me parecem nucleares.
1) O ser humano, bichinho de tênue equilíbrio, organicamente delicado, só sobreviveu até aqui porque aprendeu a se relacionar com a natureza da qual é parte. Nem sempre dialogando com ela: muitas vezes tentando dominá-la agressivamente. Mas sempre conseguindo garantir sua continuidade como espécie. Nossa trajetória vai do controle do fogo, que nos deu aconchegante calor e o poder de, estupidamente, incendiar aldeias, prédios, livros, à fissura do átomo, para curar doenças ou para lançar bombas com poder de destruição total. A ciência e a técnica que a razão humana desenvolve, superáveis por definição, podem estar a serviço da integridade e da dignidade … ou da indigna desintegração.
2) A energia nos energiza e é vital. Seus padrões ainda predominantes no mundo são oriundos das fontes fósseis petróleo, gás natural, carvão mineral. O nuclear é fonte relativamente nova, do século passado. Embora movimente e abasteça mais de 70% da França e cerca de metade do Japão, no Brasil representa apenas 3% de nossa energia.
3) Não existe máquina infalível nem empreendimento humano 100% seguro. Da domesticação de animais para nossa locomoção aos aviões supersônicos, podem vir os acidentes: desde sempre cai-se do cavalo e há desastres de aviões e automotivos, descarrilhamentos e explosões, por falhas técnicas e/ou humanas.
4) Os acidentes nucleares têm uma peculiaridade: seus efeitos se prolongam no tempo e no espaço, por países, continentes e gerações. A Agência Internacional de Energia Atômica registra 10 a 15 notificações de acidentes por ano, embora só conheçamos os casos mais notórios: Three Mile Island, Chernobyl, o doméstico Césio de Goiânia, derivado de lixo hospitalar, e, agora, Fukushima.
5) Por mais que exista o fato extraordinário de 1 grama de urânio fissionado produzir tanta energia quanto 1 tonelada de carvão ou petróleo, a contrapartida dessa eficácia é terrível: ainda não há soluções para rejeitos radioativos de alta atividade, como reitera o físico Luiz Pinguelli Rosa. O lixo atômico, cujo acondicionamento é caríssimo, sempre nos sujeitará a riscos.
6) A produção da energia nuclear é altamente dependente de subsídios públicos, por seus altíssimos custos, de retorno demorado, em pesquisa, desenvolvimento e segurança tantas vezes negligenciada. No Brasil, cada usina está custando cerca de R$ 10 bilhões. Ainda assim, as medidas de segurança e os planos de evacuação são precários, temerários, insuficientes. Um acidente em Angra, nas condições atuais, geraria um caos, com efeitos imediatos nas duas maiores cidades brasileiras.
7) A gênese da energia nuclear está umbilicalmente vinculada a objetivos militares, no mundo e no Brasil. Os fins bélicos irmanam-se e como irmãos mais velhos, de mais autoridade – às finalidades elétricas e medicinais. Jamais foi feito um chamamento à população, à cidadania, para conhecer a produção nuclear e participar de seu planejamento energético. O regime civil-militar autoritário brasileiro, inaugurado pelo golpe de 64, sempre tratou o nuclear como segredo de Estado, questão de absoluta segurança nacional. O verticalismo nas decisões é tão arraigado que, há poucos meses, o ministro das Minas e Energia do Brasil anunciou a meta de 50 usinas nucleares em 50 anos, sem o mínimo debate sequer com especialistas do setor!
8) O país dispõe de capacidade tecnológica, recursos humanos e naturais para expandir a oferta de energia elétrica, e a energia eólica vem apresentando uma curva de aprendizado tecnológico notável, no mundo e no Brasil, conforme demonstrado pelas contratações recentes, com custos declinantes, já competitivos com a opção nuclear, afirma Ildo Sauer, doutor em Engenharia Nuclear. A biomassa e a energia solar também são caminhos alternativos a serem trilhados, desde já. Quem fez as maravilhas (apesar de sua contrafação, as tragédias) com o átomo, tem capacidade para desenvolver outras matrizes energéticas.
9) Se é verdade que, em operação de rotina, as centrais nucleares não agridem o meio ambiente para além do que a própria edificação representou, o inteiro ciclo para preparar o combustível produz muitas emissões, desde a prospecção do mineral à extração e transporte do urânio, além do gravíssimo problema dos dejetos atômicos.
10) O desafio é construírmos um projeto de sociedade que dê um novo sentido da produção de energia: para que e para quem? Urge ampliar nossa eficiência energética. No Brasil de hoje, cinco setores eletro-intensivos consomem 30% da energia elétrica ofertada alumínio, química, papel/celulose, cimento, siderurgia, metalurgia do ferro em detrimento de sua oferta mais democratizada. Como ensina o físico nucelar Heitor Scalambrini, a melhor fonte de energia é aquela que for menos consumida. A busca substantiva de alternativas, como a eólica, a solar e a biomassa são um imperativo, se a humanidade desejar ter futuro. Talvez seja a hora de uma moratória nuclear, para nos reorientarmos rumo a novos caminhos.