Qualquer fato se mostra complicado quando não se consegue explicá-lo de forma coerente a uma criança. Mesmo nos assuntos de “gente grande”, sempre há uma forma de se explicar para uma criança. Como nascemos? O que é universo? Por que cai o dente? Para que servem os juízes? São alguns exemplos, certo? Digamos que sim.
Nós, humanos, somos animais que necessitamos de apoio e proteção. Desde o ventre materno nos sentimos protegidos pelo liquido amniótico que nos aquece, nutre e conforta. Quando nascemos, o alimento e a proteção nós é alcançado pelos nossos pais ou tutores. Portanto, nascemos e crescemos dependentes de proteção e cuidado.
Conforme Thomas Hobbes, na impossibilidade de uma autoproteção individual, criamos o Estado (leviatã) e damos a ele o monopólio da força, ou seja, dos meios e mecanismos necessários para a proteção e estabilidade da sociedade. Já Montesquieu nos ensina que o Estado (ao menos na atualidade, e no Brasil) tem uma tripartição de poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário.
Independentemente da função de cada um desses poderes, no fundo o objetivo é o mesmo: a busca e a manutenção do “equilíbrio e paz social” (ao menos na ótica neoliberal que capeia mundo a fora na forma de discurso único gerando uma espécie de ideologia sem ideologia).
Porém, indiscutivelmente, é no poder Judiciário que buscamos (na ausência ou falha dos outros poderes) a última proteção. Assim, em que pese a proteção materna, da família, do médico, da escola etc., quando tudo isso (ou em muitos casos “nada disso”) não é suficiente, procuramos o poder Judiciário como última instância de guarida, de proteção.
Portanto, a uma criança poderíamos explicar (de forma muito simplificada, é claro) que o Judiciário é um “grande protetor” chamado para decidir nossos conflitos quando não há alternativa. Assim funciona quando elas, as crianças, chamam o pai ou a mãe quando brigam e não se entendem. Dessa forma, esse “grande protetor” deve tratar a todos os seus “protegidos” de forma igualitária e justa (pelo menos assim é ensinado nas escolas e é o que consta em nossa Constituição Federal).
Nos últimos dias estamos acompanhando o julgamento da Ação Penal 470, também conhecida, midiaticamente, por mensalão. Todos os 38 réus desse processo estão sendo julgados pelo Supremo Tribunal Federal, sendo que apenas três deles teriam o chamado foro “privilegiado” (e aqui não vamos adentrar na discussão desse chamado “privilégio”). Numa relação direta, não podemos deixar de lembrar o chamado mensalão mineiro (e uso esse adjetivo para mera identificação, na falta de outro melhor que não traga uma carga meritória subjetiva, ou seja, sem adentrar no mérito do objeto dos dois “mensalões”).
Ocorre que, no mensalão mineiro, os réus que não teriam foro privilegiado, requereram e tiveram atendido, por parte do STF, o desmembramento do processo e o envio das denúncias daqueles “réus comuns” para a instância de primeiro grau, onde, depois, caso ocorra alguma condenação, podem recorrer das decisões para instâncias superiores, ou seja, Tribunal de Justiça e, por fim, até o próprio Supremo Tribunal Federal (mais alta corte judicial do Brasil). Diferente daqueles julgados diretamente pelo STF, que não têm outra instância superior para recorrer.
Bem, esse mesmo pedido também foi formulado pelos defensores dos réus do mensalão que, agora, está sendo julgado pelo STF. Para o espanto de todos (ao menos para aqueles que ainda se espantam com alguma coisa), diferentemente daqueles pedidos atendidos no processo do mensalão mineiro, neste que agora está em julgamento, o pedido foi negado. Opa! Mas como assim? Sob que fundamento jurídico a mesma corte atende em um processo e nega em outro?
Assim, escancarou-se uma grande diferença de tratamento dispensada pelo Supremo Tribunal Federal aos réus dos processos do mensalão mineiro e os do outro mensalão. Enquanto do primeiro desmembraram, para que apenas os que efetivamente têm foro privilegiado fossem julgados pelo STF, os ministros indeferiram os mesmos pedidos reivindicados pelas defesas dos réus do segundo mensalão.
Hã? Alguém pergunta: mas e o Estado Democrático de Direito, direitos iguais para todos previstos na Constituição? E mais: já que tudo é explicável, como explico isso para o meu filho de cinco anos de idade?
É verdade. Há coisas que não têm como se explicar para uma criança de forma coerente. Pelos menos essa incoerência de nossa corte maior não tem explicação.
*Advogado da Dallagnol Advogados Associados. www.advogadosdallagnol.com.br