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Daniela Lima*
A proposta que cria novas alíquotas de Imposto de Renda mexe com mais do que o bolso do contribuinte. Nos últimos quatro artigos, a Medida Provisória 451/08 trata de modificações na aplicação do Seguro Obrigatório para Veículos Automotores, o DPVAT. E são nesses trechos que estão algumas das maiores novidades. A MP tabela o corpo humano para definir o valor das indenizações a serem pagas às vítimas de acidentes de trânsito e, ainda, repassa uma conta de aproximadamente R$ 264 milhões, antes coberta por convênio de seguradoras, para o Sistema Único de Saúde (SUS).
A medida provisória causa polêmica entre os deputados ligados à área da saúde, que acusam o governo de favorecer o setor de seguros em detrimento do SUS, e desagrada ao ministro José Gomes Temporão. Ela é o terceiro item na pauta da Câmara e tranca as votações desde o último dia 12.
O governo alega que as alterações pretendem reduzir o índice de fraudes que atinge as seguradoras, a maioria delas ligadas a grandes bancos, e evitar o aumento de 23% na cobrança do DPVAT. Com o reajuste de 10% em relação a 2008, a taxa cobrada do condutor varia este ano de R$ 93,87 (carros de passeio e camionetes) a R$ 259,04 (motocicletas). Só no ano passado, o seguro obrigatório rendeu R$ 4,6 bilhões aos cofres públicos.
O DPVAT arca com três tipos de ressarcimentos: indenizações por morte causada por acidente de trânsito, no valor de R$ 13,5 mil; por invalidez parcial ou total, no valor de até R$13,5 mil; e no valor de até R$ 2,7 mil para cobertura de gastos com atendimento médico hospitalar.
De acordo com a tabela usada pelas seguradoras, a perda do dedo mínimo em um acidente de carro dá direito, por exemplo, a uma indenização de R$ 1.620. Já o encurtamento de uma das pernas implica indenização de R$ 810. O tabelamento do governo toma como base uma tabela utilizada pelas seguradoras, que era constantemente questionada na Justiça pelos segurados.
Sob pressão
O relator da proposta, deputado João Leão (PP-BA), prometia entregar seu relatório hoje (18), mas adiou o prazo para a próxima semana. Ainda assim, espera-se que o projeto final da MP vá a plenário sem grandes mudanças nos dispositivos que tratam do DPVAT. Segundo parlamentares contrários à norma, o relator sofreu grande pressão do governo para não modificar o texto. “A pressão está 18 por 8”, brincou o deputado, fazendo uma comparação com os níveis ideais de pressão arterial, abaixo de 12 por 8.
A dinâmica de repasse dos recursos do DPVAT é complexa. O montante arrecadado com o pagamento anual da taxa, que é obrigatório para os 40 milhões de motoristas brasileiros, é dividido em três partes: 45% vão para o Fundo Nacional de Saúde, que remete a verba para o SUS; 5% são destinados a programas de educação no trânsito; e o restante, 50%, fica sob o controle do convênio de seguradoras que administram o seguro obrigatório.
“A MP chegou quando os parlamentares estavam se preparando para o recesso, o que me causou estranheza. Poucos tiveram a possibilidade de analisá-la. O grande problema é o repasse de gastos para o SUS sem estipular uma contrapartida de receita”, critica o deputado André Zacharow (PMDB-PR), autor de uma emenda que pede a retirada do trecho que obriga os acidentados a cobrarem esse ressarcimento do SUS.
Desde a última edição da norma que trata da taxa, em 1974, é permitido às vítimas de acidentes serem atendidas em hospitais e clínicas conveniadas ao SUS e requisitarem o ressarcimento do atendimento médico.
Na justificativa da MP, o Ministério da Fazenda argumenta que esses estabelecimentos de saúde foram responsáveis em 2007 por 85% dos pedidos de ressarcimento de despesas médicas (pago no valor de até R$ 2,7 mil) feitos em nome dos acidentados, o que era, até a edição da MP, legal.
O ressarcimento dessas indenizações ficava a cargo do convênio de seguradoras, que detém 50% dos recursos do DPVAT. A MP repassa a obrigação desse pagamento para o SUS, desonerando as seguradoras. Em nota oficial, a Superintendência de Seguros Privados (Susep), do Ministério da Fazenda, justificou o repasse dos gastos para o SUS e a urgência na aprovação da MP alertando para o risco de uma “possível retirada voluntária” de empresas do consórcio de seguradoras, o que colocaria em risco o sistema de pagamento do seguro obrigatório.
As explicações prosseguem ressaltando a importância desta medida em tempos de crise econômica mundial. A justificativa do Ministério da Fazenda incomodou parlamentares. “O governo está transferindo um problema enorme para o SUS, que já está quebrado”, reclama a deputada Elcione Barbalho (PMDB-PA), presidente da Comissão de Seguridade Social.
Em resposta enviada pela assessoria de imprensa ao Congresso em Foco, a Susep alega que a MP tem o objetivo de corrigir um “desvio de finalidade” do seguro obrigatório. “O governo editou a Medida Provisória para recuperar a essência, o objetivo maior da criação do seguro: o de pagar diretamente à vítima ou beneficiários diretos o custo do atendimento médico em acidentes de trânsito. Na cobertura de despesas por atendimento médico, por exemplo, nos últimos anos, 85% dos pagamentos foram para hospitais e clínicas e apenas 15% para as vítimas. Havia um desvio de finalidade que a MP veio corrigir” .
A assessoria da Susep sustenta ainda que não haverá ônus para o SUS, já que os recursos oriundos do DPVAT (no ano passar R$ 2,1 bilhões do Seguro foram destinados ao Fundo Nacional de Saúde) seriam suficientes para cobrir os ressarcimentos com despesas médicas. “Por determinação legal o SUS recebe 45% do valor pago pelos proprietários de veículos automotores pelo Seguro DPVAT, exatamente para custeio da assistência médico-hospitalar dos vitimados em acidentes de trânsito”, diz a assessoria em texto enviado ao Congresso em Foco.
O argumento da Susep é questionado pelo deputado André Zacharow, que, em documento enviado à presidência da República no último dia 2 ressaltou a não vinculação de receita com despesa no que tange os recursos do DPVAT.
Temporão contrariado
O repasse de gastos extras para o SUS irritou o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, mas o Ministério não se posiciona oficialmente sobre a MP. Em contato telefônico, a assessoria de imprensa se limitou a dizer que todo o orçamento destinado à saúde em 2008 foi executado, sem sobras.
Ainda assim, a articulação do governo em torno da aprovação da medida provisória foi intensa. Na véspera de a MP começar a trancar a pauta da Câmara, no último dia 11, o relator da proposta, que é um dos vice-líderes do governo no Congresso, teve uma reunião com o ministro das Relações Institucionais, José Múcio. O encontro foi prorrogado e, na mesma noite, o relator da MP esteve no Palácio do Planalto e no Ministério da Fazenda, pasta que elaborou a medida provisória.
O deputado André Zacharow sustenta que, em última instância, o maior prejudicado com a MP será o cidadão. A Federação Brasileira de Hospitais (FBH) compartilha da opinião do parlamentar. Eles são interessados diretos no assunto, pois vão perder dinheiro, já que a tabela de ressarcimento do SUS com despesas médicas é aproximadamente 30% menor do que a das seguradoras.
“Em última instância, os hospitais não atenderão acidentes leves, pois já terão esgotado os recursos repassados pelo SUS e, portanto, não receberão o ressarcimento pelo serviço prestado”, alega o secretário-geral da FBH, Aramicy Bezerra.
Seguro “desvirtuado”
Já a seguradora Líder, que chefia o convênio das empresas que administram 50% dos recursos do DPVAT, tem outra visão sobre o assunto. “O seguro foi desvirtuado e a MP veio corrigir isso”, diz Ricardo Xavier, diretor-presidente da empresa.
Segundo ele, muitas vezes, havia um duplo pedido de ressarcimento. Ao ser atendido, o paciente assinava um termo dando direito ao hospital de pedir o ressarcimento ao SUS. Mas, depois, a própria pessoa também requisitava a verba, onerando o Sistema Único de Saúde.
Xavier repete o discurso da Susep e destaca a porcentagem do DPVAT (45%) repassada ao SUS. “No ano passado, R$ 2,1 bilhões foram repassados ao SUS. Ou seja, o dinheiro para pagar as indenizações continua sendo oriundo do DPVAT.” O deputado Zacharow rebate essa alegação. “O dinheiro repassado ao Fundo Nacional de Saúde pelo Seguro não tem vinculação de destinação. Portanto, os recursos do DPVAT não serão obrigatoriamente aplicados no pagamento de indenizações.”
Quanto ao tabelamento dos valores das indenizações por invalidez, o diretor presidente da seguradora Líder explica que, em dois anos, o número de ações judiciais solicitando aumento nas indenizações pulou de 50 mil para 200 mil. “Virou uma indústria. A tabela que estabelece valores para seguros de acidentes pessoais existe no mundo todo”, defende.
A assessoria de imprensa da Susep, sobre o tabelamento, diz que ele é fruto de uma “reivindicação da sociedade”. Mas dá seguimento à explicação dizendo que o valor estipulado pelas seguradoras para as indenizações eram constantemente questionados na Justiça. “O Seguro DPVAT tem sido alvo de crescimento expressivo de ações judiciais, ao longo dos últimos anos, em especial decorrentes de sinistros por invalidez. A título de ilustração, entre 2003 e 2007, o incremento foi da ordem 1.300% no montante de indenizações decorrentes de ações judiciais”, conclui, no texto.
A vice-presidente da Associação dos Advogados Militantes do DPVAT, Silvana de Souza, critica a ação. “A tabela leiloa e loteia o corpo humano. Quem é o governo para dizer quanto vale uma mão ou um pé?”, questiona Silvana. “As seguradoras dizem que estão arcando com prejuízos por conta de ações judiciais. A previsão de lucro delas para 2009 é de R$1,9 bilhão”, conclui ela.
MP no apagar das luzes
A MP 451/08 chegou ao Congresso em 16 de dezembro de 2008, três dias antes do início efetivo do recesso parlamentar. Além de alterar as regras do seguro obrigatório, a medida provisória cria duas alíquotas na tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) e concede subvenção econômica de R$ 37,5 milhões a empresas de pesca de Santa Catarina.
As duas novas alíquotas do IRPF são de 7,5% para quem ganha de R$ 1.434,60 a R$ 2.150,00; e de 22,5% para quem ganha de R$ 2.866,71 a R$ 3.582,00. As regras valem desde 1º de janeiro deste ano. Antes de votar esse item, os deputados terão de analisar outras duas MPs, que têm preferência na pauta.
*Colaborou Edson Sardinha.