Paulo Novais *
O processo legislativo, conceitualmente, tem como finalidade ordenar os procedimentos, o passo a passo, na produção legislativa, que inclui a apreciação de resoluções, projetos de lei, medidas provisórias, propostas de emenda à Constituição, entre outras. No entanto, a votação da Medida Provisória 595/2012 (MP dos Portos), no plenário da Câmara, demonstrou a mediocridade a que o processo legislativo interno pode chegar. De maneira que aquilo que deveria servir para ordenar pode terminar servindo à desordem.
Essa mediocridade, no entanto, não se refere às regras escritas, mas é resultante da atuação desastrosa, perpetrada sob a falaciosa tese de amparo regimental de interpretações irracionais. Não há dúvidas de que qualquer interpretação que fuja à racionalidade do processo, ao escopo original da norma, carece de respaldo legal, ainda que tenha amparo na literalidade do texto.
Sob essa perspectiva, a malversação das regras regimentais termina descambando para o casuísmo; para o abuso de prerrogativas; para o afastamento do escopo da norma, na sombra de interpretações parciais do Regimento; para o excesso de poder; para a arbitrariedade, aparentemente regimental. Essas vicissitudes decorrem da ausência de um princípio básico, talvez cultural, que é o compromisso com a razoabilidade, com a justeza e com a proporcionalidade das ações perpetradas com base na lei. Em boa parte das vezes, as atuações parlamentares têm foco no momento, de modo que, objetivando determinado fim, constrói-se uma tese e não importa o que fazer com essa mesma tese amanhã, em caso semelhante, se o interesse for diverso.
Há diversos exemplos, registrados em questões de ordem, que demonstram atuação vacilante, parcial, durante o processo legislativo, especialmente no plenário, a ponto de, num determinado momento, se adotar uma interpretação regimental, em momento posterior adotar interpretação contrária e, tempo depois, voltar à interpretação primeira.
O certo é que, em algumas situações, o processo legislativo beira a insanidade. Uma delas é quando o presidente incorpora a missão de “tratorar”, jargão que caracteriza a atitude de passar por cima de qualquer obstáculo que apareça pela frente, como por exemplo, da oposição, na interpretação das normas regimentais. Outra se refere à vontade da oposição de sobreviver ao poderio da base governista, com mais de 400 deputados, a qualquer custo. É a luta pela sobrevivência, e parece que nesse jogo vale tudo. A ordem do processo pode virar uma desordem desvairada.
Na apreciação da MP dos Portos, na Câmara, foi visto de tudo. Um pacote de requerimentos, emendas e destaques intermináveis procurava vencer a ampla base aliada pelo cansaço. Por exemplo, diante da permissão regimental para apresentação de requerimento de retirada de pauta, a oposição incansavelmente, só para cansar, apresentava um requerimento a cada nova sessão; e apresentava um pedido para votação nominal, invertendo a lógica da votação simbólica, a cada nova votação, só para cansar; e apresentava emendas aglutinativas; e apresentava destaques desconectados, só para cansar. É claro que voto não tinha para ganhar nenhuma! E cada requerimento, por mais simples que seja, em virtude da previsão de tempo para cada orador encaminhar, orientar e para a fala dos líderes, pode levar mais de uma hora. Houve mais de 50 requerimentos.
Por outro lado, a oposição simplesmente reagia à decisão pouco sensata de convocar seguidas sessões extraordinárias, horas a fio, dias a fio, pelo presidente da Casa. O interessante é que isso foi feito à base de regra regimental bem intencionada, que dá ao presidente a prerrogativa de convocar as sessões da Câmara. É claro que o Regimento, ao estabelecer essa prerrogativa, não previu limite por acreditar piamente na onipresença do bom senso dos presidentes, na noção de razoabilidade, o que nem sempre acontece.
Essa desordem, talvez até amparada pela letra do Regimento, levou a quase 48 horas consecutivas de sessões de votação. Foram dez sessões extraordinárias, quase que seguidas, duas ordinárias intercaladas com duas sessões solenes, praticamente em turnos de 24 horas. E, para coroar a desordem, tendo em vista que o Regimento, muito bem intencionado, deixa o tempo de duração de uma votação, com o painel eletrônico em aberto, à livre sensibilidade do presidente – naturalmente o Regimento não contava com a possibilidade de abuso. O presidente determinou que se aguardassem deputados para votar, desde as 2h30 da madrugada até as 7 horas da manhã, numa atitude incomum e tão inconsequente que culminou com o encerramento da sessão às 7 horas, sem que fosse alcançado o quórum e sem que fosse concluída a votação. Durante toda a madrugada, não chegaram deputados que completassem o quórum mínimo de votação.
Talvez meio assonorentado, mas no abuso de suas prerrogativas e ignorando o cansaço e a dignidade dos parlamentares e assessores que passaram a noite em claro, o presidente convocou mais uma sessão extraordinária, a décima, às 7h04 da manhã. O gesto valorizava a mobilização penosa da base governista que, pela madrugada, percorrera bares e lares, à procura de deputados desgarrados, mas que aos primeiros raios de sol começavam a chegar ao plenário, apáticos. Eram deputados de todos os estados que, perante a paciência e coragem do presidente, que atuou como um bom árbitro, torcedor fanático, completavam o quórum. O presidente entregava assim a vitória ao governo, naquele instante, numa conduta de flexibilidade tão excessiva que sequer o “espírito” do Regimento pudera jamais prever.
* É professor de processo legislativo na Câmara dos Deputados. Formado em Direito e em Filosofia, é pós-graduado em Direito Público e em Direito Administrativo. É coordenador técnico de liderança partidária e autor do livro Regimento Interno Facilitado da Câmara dos Deputados.