Márcia Denser*
Me chamou a atenção um ensaio de Renato Janine Ribeiro escrito em 1992, época pós-Collor, onde ele discute a idéia da política como espetáculo, aproveitando para analisar a ascensão e a queda meteórico-catastrófica do primeiro Fernando presidente (que do segundo, FHC, Paulo Arantes se encarrega às maravilhas, dele e respectivos intelectuais banqueiros).
Interessante porque o texto discute os dois sentidos principais da palavra “público” nas línguas e pensamento modernos: no primeiro, o “público” como oposto ao privado, sinônimo de bem comum, patrimônio coletivo, daquilo que não pode ser apropriado ou usado com fins egoístas ou particulares. Um “público” que não quer dizer “estatal”, pois existe uma esfera pública que não pertence ao estado, como no caso de associações ou entidades sem fins lucrativos.
Outro sentido de “público” é aquele oposto a “palco”, implicando nas pessoas que assistem a um espetáculo, grupo expresso pela passividade, apenas se manifestando quando vaia ou aplaude, compra ou boicota o ingresso, mas sem meios de reverter a radical desigualdade em relação aos atores. Aqui o “público” como sinônimo de “platéia”, “galera”, etc.
Se no aspecto teatral, o público vale menos que o palco, no outro sentido, o jurídico, o público vale mais que o privado, mas Renato observa que na língua francesa é o público como platéia que prepondera desde o século XVII, em razão da monarquia absolutista, enquanto que o outro é mais freqüente na filosofia inglesa. Ele diz: “temos aí um sinal da diferença de duas culturas políticas, uma que instaura o absolutismo e assim reduz a participação da sociedade na coisa pública ao papel de público, de passivo espectador, a quem se atribui o fascínio mas se nega a ação; e outra que vem junto com a instituição de formas de poder que, embora a longo prazo, farão triunfar a liberdade e a democracia. Contra a monarquia absoluta, a modernidade desenvolveu uma esfera pública na qual a opinião e o voto decidem as questões de interesse geral, que saem da competência do rei – agora convertido numa figura privada que se apossou indevidamente da dimensão pública – para dizerem respeito ao conjunto dos cidadãos.”
O autor comenta que a monarquia absoluta, com Luís XIV, fez intenso uso de recursos teatrais, tornando os possíveis descontentes em um público passivo, no sentido cênico. Os truques da etiqueta real visavam justamente impressionar as mentes, calar a dissidência, a fazer que num povo, como o francês, um traço psicológico – o medo do ridículo – silenciasse outro – o espírito crítico. O texto assinala que tais “tecnologias de controle da sociedade pelo bom jogo das aparências continuam fortes em nossos dias, tomando novas formas, sem pôr termo à teatralização do social e do político”.
Realmente, os últimos quatorze anos não passaram em vão, uma vez que os “democráticos” norte-americanos em geral, os anglo-saxões em si e o capitalismo no íntimo só precisaram de pouco mais que uma década para superar de forma absoluta todos os absolutismos da História: os sujeitos inclusive se dão ao luxo de manter uma Rainha – a da Inglaterra – legítima, sem contar toda a dinastia Bush (para quem essa palavrinha não faz o menor sentido) que não só aboliu a etiqueta e os bons modos como até mesmo o distinto “público”, seja como “platéia”, seja como “povo”.