Fábio Góis
As situações são várias. Mulheres muito magras ganham corpo mais voluptuoso. Mulheres gordas emagrecem por mágica. Seios crescem ou diminuem. Imperfeições, como celulites, cicatrizes, sinais, rugas, desaparecem. Desde a invenção do photoshop (ferramenta de manipulação de imagens em meio virtual), São Tomé ficou obsoleto. Não é mais possível se acreditar em tudo o que se vê. O photoshop e seus congêneres retratam uma realidade relativa, de acordo com conveniências comerciais ou editoriais. Mas agora o uso do recurso terá um preço.
Se depender do Projeto de Lei (PL) 6853/10, em tramitação na Câmara, toda e qualquer publicação ou veículo que alterar de alguma forma a fotografia publicada terá de registrar a seguinte advertência: “Atenção: imagem retocada para alterar a aparência física da pessoa retratada”. Quem desobedecer à determinação pagará caro: multa de até R$ 50 mil por anúncio, com valor dobrado em caso de reincidência. É o que define o texto original do PL, de autoria do deputado Wladimir Costa (PMDB-PA).
“[O projeto] obriga que imagens utilizadas em peças publicitárias ou publicadas em veículos de comunicação, que tenham sido modificadas com o intuito de alterar características físicas de pessoas retratadas, tragam mensagem de alerta acerca da modificação”, diz a ementa do PL 6853, que já é conhecido como “Lei do Photoshop”.
A preocupação do deputado é com a “a idealização do corpo humano”. As imagens retocadas proporcionariam um anseio por um padrão estético artificial, impossível de ser alcançado na vida real. Iludidas pelas imagens retocadas, as pessoas buscam inutilmente alcançar tão padrão e se mutilam ou comprometem a sua saúde. Para Wladimir Costa, a questão não é coibir o trabalho dos editores de imagem, técnicos de informática ou quem mais possa utilizar o programa de alteração profissionalmente. A preocupação teria viés psicológico. É, na sua avaliação, um problema de saúde pública.
Wladimir cita os casos da bulimia e da anorexia, distúrbios alimentares diretamente relacionados à busca de um peso ideal – mesmo que, para muitas de vítimas de um ou outro mal, essa meta resulte (geralmente) mulheres em pele e osso, verdadeiros esqueletos vivos. Não são raros os sites, blogs e até comunidades virtuais que não só vêem a anomalia com naturalidade, mas a transformam em uma espécie de filosofia de vida com direito a seguidores – e, consequentemente, potenciais vítimas.
Distúrbios crescem
Na justificativa do projeto, Wladimir apresenta números e estudos sobre os distúrbios. “Infelizmente, os transtornos alimentares têm se tornado cada vez mais prevalentes, e são justamente a bulimia e a anorexia que têm crescido a taxas mais rápidas. As taxas de prevalência de anorexia nervosa e bulimia nervosa giram em torno de 0,5% e 1%2, respectivamente. Vários estudos vêm demonstrando um aumento da sua incidência nas sociedades industrializadas do ocidente, sendo particularmente maior entre jovens na faixa de 15 a 24 anos de idade”, observa o texto.
O projeto está em análise em três comissões, e precisa ter parecer votado antes de ir à deliberação em plenário: de Constituição e Justiça e de Cidadania; de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, e de Defesa do Consumidor. Uma vez aprovada a matéria, caberá ao Executivo designar o órgão que ficará responsável pela fiscalização das advertências.
100% real
Na defesa de seu projeto, a assessoria de Wladimir menciona um episódio recente vivido pela publicação norte-americana Marie Claire. Em abril deste ano, os responsáveis pela revista na França (a revista é publicada em diversos países) resolveram produzir uma edição inteira com imagens 100% originais, ou seja, sem qualquer retoque nas ilustrações e fotografias reais.
“As leitoras da revista ficaram encantadas com aquilo, receberam muito bem aquela edição. Elas se sentiram iguais àquelas mulheres lindas retratadas. Dessa forma, a leitora vai se sentir muito mais mulher”, informou a assessoria.
De fato, a “inovação” atraiu a simpatia de diversas leitoras da revista semanal, como pode ser confirmado em sites femininos como “Garotas Modernas”. Em 23 de abril, por exemplo, a leitora portuguesa Sandra comentou uma notícia sobre a iniciativa da Marie Claire, aprovando-a.
“Era tudo muito mais autentico. Modelo que tinha sardas no rosto aparecia (bela) com elas. Modelo que não tinha o nariz perfeito aparecia belíssima com ele. Modelos belíssimas que não eram perfeitas. O Photoshop criou uma ideia errada de perfeição”, registrou a jovem. “Graças a Deus!”, limitou-se a registrar, em conciso desabafo, a brasileira “flamenguista e chocólatra” Ysnaya, nos mesmos dia e espaço virtual.
“Esquizofrenia”
Projetos semelhantes ao de Vladimir Costa, porém, não conseguiram sucesso em outros países. Na França, por exemplo, a legisladora Valerie Boyer, que pertence ao partido do presidente Nicolas Sarkozy – UMP, de centro-direita –, apresentou uma proposta nos mesmos moldes do projeto de lei brasileira. Um selo de advertência estava entre as exigências impostas pela matéria aos veículos franceses.
Em uma das diversas entrevistas à imprensa francesa, Valerie relatou ter visto uma famosa revista com a seguinte frase estampada na capa: “Seja quem você é!”. Na página seguinte, a imagem de uma adolescente “obviamente” modificada por Photoshop. “As ilustrações contradizem a mensagem”, observou a parlamentar, relatando a sensação de “esquizofrenia” por trás da representação de um “mundo ideal, com mulheres muito magras, torneadas e seus sorrisos branquíssimos sem defeitos”. Realidade muito distante, acrescentou, da “plebe” e seus “problemas de saúde” e eventuais imperfeições.
A congressista francesa foi fortemente contestada pelas partes diretamente interessadas no uso de Photoshop e equivalentes. “[O pintor renascentista] Michelangelo pintou corpos idealizados, então a idealização da beleza sempre existiu. Isso é um debate falso”, disse Anne-Florence Schmitt, editora da revista Madame Figaro, de acordo com o blog norte-americano “Jezebel”, especializado em celebridades, sexo e moda para mulheres.
Já a editora do braço francês da Marie Claire, Christine Leiritz, assim manifestou-se: “Nossos leitores não são idiotas, especialmente quando eles vêem aquelas celebridades que têm 50 anos e aparentam 23. Claro que elas foram todas retocadas”.
Em novembro de 2009, a proposição foi apreciada – e rejeitada – na assembleia nacional francesa. O parlamento inglês também apreciou – e rejeitou – projeto semelhante proposto pelo Partido Democrático Liberal, o equivalente ao DEM brasileiro. “Ainda mais ousado”, destaca Wladimir em sua argumentação, informando que a punição em terras britânicas consistia em “banir por completo fotos manipuladas em anúncios voltados a crianças com menos de 16 anos”.
“Aqui, optamos não pela censura, mas por disponibilizar uma informação mais completa ao cidadão, para que ele possa ter mais subsídios para construir seus próprios valores e tomar suas próprias decisões”, antecipa-se o deputado na justificativa do PL (confira a íntegra).
Questão de prioridade
A depender do entendimento do psiquiatra Rafael Boechat, a matéria também fracassará no Congresso Nacional. Pesquisador das áreas de Neurociência e Comportamento da Universidade de Brasília (UnB), Rafael não acredita que jovens vão mudar de comportamento por causa de uma tarja de advertência sobre as adulterações de imagem.
No entanto, ele explica que o problema está no estabelecimento de um padrão estético reforçado por veículos com vasta abrangência social. “As imagens vão reforçar essa tendência [da busca pela ‘perfeição’], a pressão pela beleza magra. Aliás, esse comportamento será reforçado por toda forma de expressão e pressão desse tipo de beleza”, disse o estudioso ao Congresso em Foco.
Para Rafael, mesmo que seja aprovado, o projeto não terá eficácia prática no que diz respeito à problemática, por exemplo, da anorexia e da bulimia – questões que motivaram a proposição de Wladimir.
“Existem muitos sites que incentivam [as anomalias], inclusive com exibição de imagens de meninas quase morrendo, em pele e osso, além dos demais conteúdos que estimulam esse tipo de comportamento, de transtorno alimentar”, declarou o professor da UnB, para quem são mais efetivas medidas como a estipulação, por parte de agências de modelo, por exemplo, de níveis mínimos de peso e nutrição, como o índice de massa corporal.
Rafael acrescenta que a questão de saúde pública percebida pelo deputado – ainda que nas entrelinhas da idealização da imagem perfeita – seria mais bem combatida com modelos de tratamento, estabelecimento de condutas em discussões com agências de modelo e congêneres, obrigatoriedade de exames periódicos para modelos e medidas similares. Para o acadêmico, o Parlamento não é o lugar adequado para o debate.“[A ‘Lei do Photoshop’] não é uma prioridade. Claro que é sempre bom provocar uma discussão, mas a relevância é mínima”, finaliza.
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