Márcia Denser*
Acolhendo sugestões de que aqui se fizesse mais ficção e menos política, porque, aí sim, meu texto iria melhorar horrores, bem como largar mão de ser bocó e ingênua e dizer yes às privatizações para acabar de uma vez por todas com essa corrupção por detrás e pela frente das barganhas eleitoreiras dos cargos nas estatais, porque só privatizando se moraliza para sempre a economia e o país, então, ficcionemos. Até porque foi uma idéia excelente revestir o tema com um manto ficcional na linha Miami-Cancún. Ainda estamos de férias, fim deste mês tem Carná, pois o Brasil só começa a falar sério em março, e até lá se pode sonhar. Sonhar não ofende, não é mesmo? Me and Clóvis Bornay.
Certo, então alarguemos a prática do possível (perdão, já sei, nada de veadagens de citar Sartre, que mulher não deve ler veadões subversivos, este Sartre era divergente até no estrabismo), levantemos bandeiras em defesa das privatizações de todos os serviços públicos, sonhando em primeiro lugar com a privatização da água, já que temos o rio Amazonas. Não seria maravilhoso?
O papo furado pra boi dormir – e ao som de Mercedes Sosa – é que o acesso à água é um direito humano fundamental. Portanto, seu abastecimento compete ao Estado, uma vez que a privatização dos serviços públicos – água, energia elétrica, telefonia, comunicações – transforma o bem público em mercadoria. E daí? Quem não puder pagar pela água da torneira que use mineral com gás ou Perrier. Se o consumidor realmente contemporâneo tem um incrível leque de opções, para que polemizar?
Ainda bem que o Brasil está sendo pressionado pelo FMI e pelo Banco Mundial, tendo felizmente já iniciado o processo salvador em 2000 na Amazônia. Aliás, a privatização da água é um processo que ocorre em escala mundial desde a década de 80, tendo como pioneiros Inglaterra e França, ou seja, o Primeiro Mundo sempre à frente, nos deixando – mais uma vez! – duas décadas atrasados.
Segundo estudos da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental, a privatização sai muito mais cara para o consumidor. Se os investimentos forem feitos por órgãos públicos municipais, o preço da água seria de 37% a 48% menor do que no modelo proposto pelas PPPs (parcerias público-privadas). Mas quem quer órgãos públicos nessa jogada superprivée? Para subdesenvolver o lance? Para que deixar com cara de Autarquia um projeto que está mais para Bilbao Building?
Com o discurso das PPPs, que nada tem de brasileiro – imagine, brasileiro não tem capacidade nem escolaridade nem poder aquisitivo pra resolver sequer raiz quadrada, quanto mais para engendrar esquemas para quatro multinacionais e com respaldo de agências multilaterais de financiamento! São elas a Ondeo (filial da francesa Suez-Lionnaise), a Veolia, a Saur e a RWE (alemã e sua filial inglesa Thames Water), que detêm o controle sobre os serviços públicos de saneamento básico do mundo inteiro. E o resultado é o aumento exorbitante do preço da água. Ou seja, algo duma modernização e duma flexibilização sem precedentes!
Em 1995, a Genérale dês Eaux (Veolia) ganhou o leilão de privatização da água em Tucumán, Argentina, aumentando em 104% o preço dos serviços. Em 2000 a norte-americana Bechtel assumiu o controle dos serviços de água de Cochabamba na Bolívia. Resultado: nos dois casos a mobilização popular obrigou seus governos a rescindirem os contratos com tais empresas e a assumirem diretamente a prestação desses serviços públicos.
Vejam só, no limiar do terceiro milênio, a resistência perversa e burra ao progresso do planeta só perdura nessas republiquetas corruptas de bananas, segundo Hitler, autor da melhor definição para o nosso pobre hemisfério! Aposto que foram as lutas de Cochabamba que animaram a turma do poncho y conga e deu no que deu: Evo Morales Fashion, que cena mais lhama!
Assim, privatização ou ficção?
De qualquer forma, as duas latem.
PS: Faltou dar o crédito para o texto "A privatização da água no Brasil e no Mundo", de Silvio Caccia Bava, sociólogo, diretor do Instituto Pólis e membro do Consea. Está no www.desempregozero.org.br, que é um site seríissimo, de pesquisadores, economistas sobretudo, preocupados com o país.