Desde que as grandes mídias corporativas – a exemplo da CNN – assumiram, via satélite, o controle da informação no planeta, eu me pergunto como a História recente será legada às gerações futuras sem as distorções do interesse econômico global que permeou suas motivações ocultas?
A exemplo disso, sabemos que os seguidores da Escola de Chicago, executores das políticas neoliberais, tendem a retratar o período posterior aos anos 80 como uma marcha vitoriosa e triunfante de sua ideologia: ao mesmo tempo em que os países estavam aderindo à onda democrática, confirmavam a “epifania” coletiva de que povos livres e mercados livres desregulados caminham lado a lado. Contudo, essa “epifania” era ficcional, posto que ideológica e não real.
Na realidade, assim que os cidadãos conquistaram a liberdade tão almejada, escapando às câmaras de tortura das ditaduras, como nas Filipinas de Ferdinand Marcos, no Uruguai de Bordaberry ou na Argentina de Videla, foram atingidos por uma tempestade de choques financeiros – choques da dívida, choques de preços, choques monetários – criados pela economia global desregulada.
Em meados dos anos 80, muitos economistas observaram que uma crise hiperinflacionária provoca os mesmos efeitos da guerra efetiva: espalha medo, confusão, gera grupos de refugiados, destrói vidas. Ficara evidente que a hiperinflação tinha desempenhado no Brasil, o mesmo papel que a “guerra” para Pinochet no Chile e a Guerra das Malvinas para Margaret Thatcher – produzira-se o contexto para implantação de medidas de emergência, um estado de exceção durante o qual as regras da democracia ficaram suspensas e o controle econômico passara às mãos dos especialistas linha dura de Chicago, que percorriam os países a ensinar como armar uma ratoeira mais eficiente, e isto queria dizer que a hiperinflação não era um problema a ser resolvido, mas uma oportunidade de ouro a se aproveitada!
E esse tipo de oportunidade havia aos montes nos anos 80! Na realidade, grande parte do mundo em desenvolvimento, especialmente a América Latina, estava passando por um ciclo de espiral hiperinflacionária resultante de dois fatores enraizados nas instituições financeiras de Washington:o primeiro foi a transferência para as novas democracias das dívidas ilegítimas acumuladas pela ditadura; o segundo, a decisão de elevar a taxa de juros – tomada pelo Banco Central dos Estados Unidos sob a inspiração de Milton Friedman – que aumentou de modo extraordinário, da noite para o dia, o montante daquelas dívidas.
Em 1983, quando a junta militar argentina caiu após a Guerra das Malvinas e foi eleito presidente Raul Alfonsin, Washington exigiu que o novo governo pagasse a dívida contraída pelos generais – que saltou de 7,9 bilhões de dólares do ano anterior ao golpe, para 45 bilhões no momento da mudança do regime – quantia a ser paga ao FMI, ao Banco Mundial e a outros bancos privados dos Estados Unidos. Segundo Naomi Klein, “no Brasil, o caso mais dramático, os generais tomaram o poder em 1964 prometendo manter as finanças em ordem, mas acabaram elevando a dívida do patamar de 3 bilhões de dólares para 103 bilhões de dólares em 1985. Era evidente que tais dívidas era “odiosas” e que os povos recém-libertados não deveriam ser obrigados a pagar a conta de seus opressores e torturadores.”
No Cone Sul, boa parte dos créditos externos financiou a repressão e as compras militares. E o que não foi gasto em armas simplesmente desapareceu porque uma cultura de corrupção permeou as administrações militares – um lampejo do futuro de depravação que viria quando as mesmas políticas econômicas liberalizantes fossem expandidas para a Rússia, China e a “zona livre fraudulenta” do Iraque ocupado.
De acordo com um relatório de 2005 do Senado norte-americano, Pinochet manteve uma rede bizantina de 125 contas secretas em bancos estrangeiras em nome de membros de sua família, e a maior estava no Riggs Bank em Washington, no valor estimado de 27 milhões de dólares. O Banco Mundial, por sua vez, tentou achar o destino de 35 bilhões de dólares emprestados à junta militar na Argentina e descobriu que 19 bilhões, 46% do total, tinham sido remetidos para fora do país. Um dos professores da Escola de Chicago descreveu este sumiço de bilhões como “a maior fraude do século XX”!
Mas a tais dívidas, que já eram um fardo para as novas democracias do Cone Sul, juntou-se o chamado “Choque de Volcker”: os economistas usaram esta expressão para descrever o impacto da decisão tomada pelo então presidente do Banco Central norte-americano, Paul Volcker, ao aumentar a taxa de juros para 21% em 1981, provocando convulsões no mundo
Foi aí que a teoria da crise de Friedman se fortaleceu. Quanto mais a economia global seguia suas prescrições, com taxas de juros flutuantes, preços desregulados e economias orientadas para a exportação, mais o sistema se tornava propenso às crises, produzindo aquele tipo de desintegração que Friedman identificou como a única circunstância que permitia aos governos aplicar seus ensinamentos mais radicais: quando somas ilimitadas de dinheiro ganham liberdade para viajar através do planeta em grande velocidade, e os especuladores ficam soltos para jogar com o valor de qualquer coisa, de café a moedas, o resultado é uma enorme volatilidade.
E, na medida em que as políticas de livre comércio encorajam os países pobres a permanecer confiando em exportações de produtos primários – café, cobre, petróleo ou trigo –, eles se tornam particularmente vulneráveis a ponto de cair na armadilha do círculo vicioso da crise contínua. Uma queda brusca no preço do café joga economias inteiras na depressão, se aprofunda com a ação dos chacais, negociantes de moedas que, percebendo o declínio financeiro de um país, apostam contra a moeda local, fazendo seu valor despencar. Quando a isso se soma a elevação dos juros e das dívidas nacionais, temos uma catástrofe econômica.
Pode-se argumentar que outras opções estavam disponíveis aos países do Terceiro Mundo: eles poderiam se negar a pagar a dívida, juntar-se aos países vizinhos formando um cartel de devedores, poderiam ter criado um mercado comum baseado nos princípios do desenvolvimentismo, um processo interrompido pelos regimes militares. Contudo, parte do desafio daquele tempo consistia justamente no legado de terror enfrentado pelas novas democracias. Tendo escapado da escuridão das ditaduras, os políticos eleitos não estavam dispostos a correr o risco de uma nova rodada de golpes de estado patrocinada pelos Estados Unidos, razão pela qual se abstiveram de novamente implantar “políticas desenvolvimentistas”. Evitando entrar em guerra com as instituições de Washington, que controlavam suas dívidas, as novas democracias do Cone Sul tinham poucas escolhas além de aceitar suas regras, e no começo dos anos 80, tais regras se tornaram ainda mais rígidas.
Foi por isso que o choque da dívida coincidiu precisamente – e não acidentalmente – com uma nova era nas relações Norte-Sul, a qual tornou as ditaduras militares praticamente desnecessárias. Era o despertar da idade do “ajuste estrutural”, conhecido também como “ditadura da dívida”.
(A epopéia prossegue na próxima coluna)