Lamentável o surto de censura na Câmara de Vereadores de Porto Alegre sobre a exposição de cartunistas.
Censura rima com ditadura, tortura, grossura — coisas que emergem agora de maneira muito feia na Casa política que deve representar a cidadania da civilizada capital gaúcha.
Todo mundo tem o direito de rir ou de chorar diante das charges, que podem ser muito boas ou muito ruins.
Isso depende da opinião de cada um, que é livre para gostar ou desgostar do que vê.
Um vereador da cidade saiu a percorrer a exposição, com celular em punho, para gravar o seu vídeo de indignação com a mostra. Resultado: a presidente da Câmara, Mônica Leal, acabou proibindo a exposição, alegando “falta de respeito ao presidente da República, falta de limite e de bom senso”.
Cabe a pergunta: que limite, que bom senso, cara-pálida?
Quem estabelece limites, quem determina bom senso? Não é a censura sem limites ou a proibição insensata da nobre vereadora que estabelece o que pode ou não ser criticado, ironizado, satirizado, debochado numa charge de humor político.
O limite exclusivo é o do talento do chargista, o julgamento soberano é o de quem vê, sem nunca chegar ao exagero de proibir aos outros que vejam o que não lhes agrada.
A imposição da vontade de alguém, seja uma reles vereadora, seja um empertigado general, não é admissível em uma democracia que se respeita e que deve respeitar a opinião dos outros, mesmo aquelas que não nos agradam.
Ou, no caso de uma charge, até aquelas que nos fazem rir, ou chorar de raiva.
A charge política tem essa maldição. Na maioria das vezes, nem é para dar gargalhadas. É apenas para provocar, incomodar, aporrinhar, enraivecer. Enfim, fazer pensar, coisa cada vez mais difícil nesses tempos trevosos.
O grande Millôr Fernandes já dizia: “Imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”. A charge é ainda mais radical: não existe charge a favor, bajulatória, babativa. Assim não seria engraçada, mas apenas triste.
Charge tem que incomodar. Até mesmo o atual presidente da República, que segundo a vereadora foi “desrespeitado”.
Mas, como respeitar um presidente como esse, o mais pândego, desastrado, xucro, grosseiro, rombudo chefe de Executivo da história republicana?
Todo santo dia, Jair Bolsonaro — Messias para alguns, Mito para outros — é uma piada pronta ou um ridículo novo na esteira das sandices administrativas e das patadas vocais que distribui em catadupa, causando vergonha nacional e provocando incredulidade internacional.
Bolsonaro pede, exige, clama por charges duras, impiedosas, cruéis como o pensamento (!) cru que exala no seu equestre ofício de capitão-presidente, sempre plantado nos seus coturnos de solado duplo de inexcedível estupidez.
Bolsonaro é a alegria de qualquer chargista informado e a tristeza de qualquer brasileiro consciente.
Entre as 35 charges da exposição censurada em Porto Alegre, uma delas mostra o americano Trump — outro merecido ícone do chargismo mundial — defecando sobre a embaixada brasileira, o que incomodou as narinas sensíveis do Legislativo porto-alegrense.
É apenas uma piada, talvez de mau-gosto. Mas, é oportuno lembrar que foi o nosso desbocado Bolsonaro quem adicionou, de forma explícita, o cocô no léxico político nacional.
Enquanto a Amazônia pegava fogo, brotou da cabeça infecta do capitão-presidente a ideia malcheirosa de que a melhor maneira de proteger a floresta seria “fazer cocô dia sim, dia não”. Alguém aí tem piada melhor, ou menos fedorenta, do que essa?
Como respeitar um presidente que tem tamanha prisão de ventre mental?
Só um chargista para arrancar alguma graça dessa desgraça presidencial…
Graças à decisão burra da censura, a exposição que deveria ficar confinada ao perímetro da Câmara Municipal acabou ganhou visibilidade nacional. As charges, que só poderiam ser vistas por quem fosse até o espaço da mostra, ganharam o mundo pelos blogs, sites e portais da internet sem censura.
Pior do que tudo, a desastrada censura de Porto Alegre expôs a capital dos gaúchos a um ridículo universal.
Menos pela qualidade das charges, o que parece ter irritado mais aos censores foi a inevitável referência ao irreverente Bolsonaro.
Pela adulação explícita, a violência contra a livre expressão dos chargistas reforça a linha grossa do bolsonarismo idem que avassalou corações e mentes do Rio Grande do Sul, sede da nona maior vitória estadual de Bolsonaro na eleição de 2018.
Dos 8,3 milhões de eleitores gaúchos, o capitão ganhou o voto de 3,9 milhões, coisa de 63,24% do eleitorado. Ele venceu o segundo turno em 407 dos 497 municípios gaúchos, incluindo todas as 10 zonas eleitorais de Porto Alegre.
Assim, o Rio Grande velho de guerra, trincheira de lutas libertárias e berço de vultos históricos na peleja eterna por independência, progresso e evolução, virou um santuário do bolsonarismo, no que ele representa de mais atrasado, boçal, estúpido, mal-humorado.
Censurar uma charge, agora, virou um retrato sem graça da capital dos gaúchos.
* Jornalista e autor de Operação Condor: o sequestro dos uruguaios (editora L&PM, 2008). Foi consultor da Comissão Nacional da Verdade. E-mail: cunha.luizclaudio@gmail.com
Do mesmo autor:
> Os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o governo Bolsonaro
> O lamento do jornalista: o sequestro dos uruguaios e os tempos de Bolsonaro
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