Como é que eu posso escrever a resenha de um livro que não me permite parar de rir?
Nem sei por onde começar, pelos embutidos de frango de Itaquerambu? Quando Zeca, o putagonista – sim, porque Reinaldo Moraes deu uma turbinada nesse tal de “protagonista” que, afinal de contas, ainda é aquele cara que, segundo os manuais, narra a história na primeira pessoa – pois então, eu podia começar essa resenha na hora em que Zeca recebe a missão esdrúxula de rechear os embutidos do frigorífico supra. Mas aí eu estaria fazendo uma leitura de trás para frente. Acho que é melhor acionar o Miro de uma vez, traficante particular do Zeca. Vamos lá. Sinceramente, eu desconfio que Reinaldo Moraes inventou a trigésima pessoa do singular, haja vista que o dito cujo – entre uma infinidade de reinações sintáticas e morfológicas – acabou zoando com os manuais, e continua o mesmo: afana a grana de um puta sentimental cafunguelê e se mete em várias roubadas para saciar sua libido despirocada e – graças aos Deuses da boa literatura – os embutidos Itaquerambu (ao longo dessa aventura picaresca) vão ser recheados apenas por motivos torpes e fúteis. Então, já que não é pelas normas cultas, é pelo amoralismo, ou pelo punhetismo? A situação é complicada. Não bastasse a urbanizada que Moraes deu em Pedro Malasartes, e o mais bizarro, não bastassem os aditivos e a evolução tecnológica do anti-herói, Morales ainda me obriga a ir no embalo e cometer esses “trocadalhos”, coisa que eu detesto.
O que eu poderia dizer? No meio da bandalha (ou na iminência da próxima putaria) o sacana do Reinaldo Moraes conseguiu me enternecer. Vejam só. O nome disso é assinatura. Todo grande escritor tem uma. Quando o ex-Ricardinho, do lendário “Tanto Faz” e agora vulgarmente denominado Zeca (o mesmo sacana) cumpre suas obrigações paternas e leva seu filho, Pedrinho, para passear na escada rolante do Shopping, provavelmente o Iguatemi da Faria Lima. Não consigo imaginar Zeca e Pedrinho no Center Norte. Zeca consome muito pó vagabundo, mas é um cara cultivado, dá suas bandas acompanhado de Rimbaud, Buñuel, Cesário Verde, Jim Morrison, Baudelaire e cia ltda. À sua peculiar maneira, o cuidado que Zeca tem com Pedrinho é uma das mais tocantes e menos óbvias demonstrações de delicadeza na literatura brasileira de todos os tempos – uma pena que ninguém vai perceber isso. Quero dizer que é fácil achar delicadezas na obra de uma Lygia Fagundes Telles. Procure uma grosseria, nobre leitor.
O previsível nessa Pornopopéia é esticado feito uma carreira maldita, humor refinadíssimo e ao mesmo tempo intestinal, somado a um montão de subversões nem tão subliminares que, além de transladarem o leitor para uma suruba pré-joyceana, ainda atuam no lugar-comum como se fossem um câncer que tira onda, comendo pelas bordas, lambendo os desavisados nos lugares mais explícitos porém insuspeitos (ou vice-versa) – há muito que um autor brasileiro não se atrevia tanto. Não se trata apenas de liberdade, despudor e cara de pau. Trata-se de Reinaldo Moraes manipulando esses elementos como se esticasse uma linha, em momento de fissura e êxtase. Daí meu riso descontrolado, eu acho. Na maior parte do tempo, essa “arte-sujeira” nem precisa de disfarces: pode irromper em trocadilhos infames, em haicais pra boi dormir, besteirol puro ou numa alucinaçãozinha psicodélica porque ninguém – tirando a Teresinha, a secretária japa do Zeca que prepara uns bacons maravilhosos com ovos fritos – enfim, tirando a Teresinha, ninguém é de ferro. Se você for ao livro, vai descobrir mais dois milhões de motivos para admirar a obra de Reinaldo Moraes. Mas por onde eu começo?
Quem seria o interlocutor de Zeca senão o próprio Reinaldo, que se manteve fiel (ou preso, sabe-se lá…) ao Ricardinho de “Tanto Faz”? Pensei muito nisso: depois de todos esses anos esse puto continua o mesmo? Não tem nada a me dizer (ia escrever “ensinar”)? O que é isso? Defeito ou virtude?
Zeca dá a resposta: “Porra, às vezes desconfio que não aprendi nada com a vida. No resto das vezes tenho certeza disso.” Portanto, virtude, como não podia deixar de ser, travestida de defeito. Parece que estou com o mesmo problema do Zeca, o herói sem nenhum caráter e cheio de paradoxos vagabundos: como é que vou encher essas tripas? A lógica, ou melhor dizendo, a piada, diria que o ideal seria enchê-las de embutidos de frango. Podia começar quando – depois de roubar a putinha romântica – nosso querido canalha bate uma punheta esquizofrênica com o pau do travesti-buceto, atraído pelo pó de pirlimpimpim mais puro dos Andes. Será? Mas e se eu falasse da grande sacerdotisa da seita do Zebu bagavagabundalelê que abusa dos gerúndios telemarketing “vocês agora ‘vão estar entrando’ numa outra esfera de consciência etc etc” para guiar os novatos, gordas e velhacos na suruba agônica que virá em seguida, ao som entorpecente da boa cítara do velho Marsicano? – entulho do “Abacaxi”(ed L&PM), lembram?
A partir daí Zeca não controla seu priapismo verbal e nós, leitores à beira de mais uma convulsão de riso, o acompanhamos numa viagem de ácido, metidos todos numa suruba que não sabemos se aconteceu de fato ou se é fruto do delírio do … pro-ta-go-nis- ta, aquele sacana que os manuais insistem em dizer que é o narrador em primeira pessoa. O leitor, que não tem nada contra os manuais, e que está a fim de participar do surubão, segue o Zeca. Sim, entramos numa outra esfera que evidentemente detona minha bexiga e, imagino,vai detonar a pose de muito neguinho metido a escritor por aí. Puta livro. Nem quero imaginar os efeitos que essa Pornopopéia vai causar nas madames que se comovem com as valsinhas do Chico Buarque. Eu acho que o povo sensível, bem como os bitiniques de padaria, não vai entender bulhufas dessa epopéia pornô. Os motivos são os mesmos, o problema é deles, e eu não quero perder tempo com digressões. Ou o leitor se deixa abduzir pela fraude, ou vai procurar outra coisa pra fazer. Existem saraus concorridíssimos e modorrentos em Paraty, de repente o próprio Zeca está lá disfarçado de Reinaldo Moraes, nunca se sabe. Eita mundo cheirado e maluco, do desapego que não desgruda e da despiroquice que não desocupa a moita, lugarzinho podre ao qual o autor singelamente batizou Pornopopéia – com o devido acento agudo e as tremas e as viajadas na maionese correspondentes, claro.
Sossô que se cuide, ela é a melhor amiga da filha do Nissim, que é o melhor amigo do Zeca. Sossô é uma graça e é mais uma roubada que está na alça-de-mira do nosso putagonista – essa junkiezinha é o atestado de óbito da Capitu, anotem.
O novo livro de Reinaldo Moraes é um corpo vivo, e escroto. Uma pereba literária, uma lufada de oxigênio carregado de vícios e CO2, caramba! O Reinaldão escreveu um “Ulisses” da retro-xavasca. Trouxe Dublin para dar umas bandas na rua Augusta. E, engraçado – vejam só como ele é um grande ilusionista – chegou uma hora que eu até acreditei que elas, as primas, haviam voltado ao métier, que estavam lá na esquina da Peixoto Gomide disputando o espaço com os emos e os carecas gays, até nisso Reinaldo Moraes me fez acreditar. Se as putas não tivessem ido embora por falta de clientes & romantismo, e se não fosse a alta literatura a me enganar, eu bem que pagava um boquete pra essa Pornopopéia.
Ed. Objetiva, 475 págs, R$ 54,90.