Marcelo Mirisola*
Toda noite, depois de lavar a louça do jantar e de terminada a novela da Globo, minha avó se trancava no quarto. E só saía de lá perto das onze e meia, para sacudir o velho Pascoal, meu avô, que roncava na frente da tevê. Ela rezava para os mortos, fazia novena para Nossa Senhora e era devota de santa Rita de Cássia. Também fazia promessas para santo Expedito em casos mais urgentes, e não descuidava de suas mandingas quando o Palestra jogava contra os corintianos maledetos. Eu era seu neto preferido, e o único a ter minha foto dependurada no hall de entrada, embaixo do altar de Santa Rita. Isso deixava os outros netos inconsoláveis de inveja, digamos que o meu privilégio (porque não era apenas preferência) era escancarado e ninguém tinha nada a ver com isso.
A “vecchia” me escolheu no berço, e sentenciou: esse é meu bambino. Na casa de Dona Anita, eu era um rei. E desde cedo – confesso – déspota esclarecido, sádico e sacana. Ora, eu tinha de aproveitar porque, quando voltava para casa da minha mãe, a história era bem outra. Nem vou falar dos rangos que a “vecchia” fazia. A simples lembrança de um ovo frito já é castigo demais para um cara feito eu, que – depois de todos esses anos – vive agonizando nos quilos da vida. Mas quando lembro da vecchia, lembro sobretudo das intermináveis novenas, das imagens do criado-mudo, dos santinhos espalhados pela casa, de São Benedito na cozinha, do crucifixo na porta de entrada, do altar de santa Rita, e das velas acesas no quartinho da empregada. Não consigo lembrar de mim, nem lembrar da vecchia de outra maneira.
Em 1996 ela ficou viúva. E o cabeçudo do meu avô – é claro – só podia ter morrido do jeito que morreu: câncer na próstata. Quatro anos depois, minha avó é que foi pro beleléu. E eu fiquei órfão das comidas da dona Anita e de suas preces, porque ela era a única pessoa que pedia por mim, e também fiquei órfão do Pascoalão, meu avô que, além de me ensinar a cortar salame bem fininho, às vezes me sugeria “um passeio”. Ele achava graça nesse negócio de camisinha, liberava uma “gaita” e sempre recomendava: “nunca pechinche com mulher da vida”. Saudades.
Lembrei disso porque, ontem de noite, o Pastor R.R. Soares proibia – via horário comprado na TV Bandeirantes – a adoração a qualquer um que não fosse Jesus Cristo. O sacana dizia que não existiam santos, e que as imagens dos santos eram coisa do diabo. Cazzo! E a Santa Rita da minha avó? E o Santo Expedito, e as mandingas para derrotar o Coringão? E as imprecações do velho, que xingava Deus, Nossa Senhora e o Capeta quando o Palestra perdia? É coisa do diabo defenestrar o diabo?
Isso tudo eu apago da minha memória? Como é que eu posso ser órfão da minha memória, e acreditar num Jesus xarope que ocupa o lugar do Bonanza na TV Bandeirantes?
Eu penso que as religiões – independente dos genocídios e fogueiras – ao longo do tempo e, apesar dos pesares, sempre substituíram com eficácia uma parte doce e irrelevante do cérebro e, em troca, até que devolviam algo compatível (um deus, virgens celestes, guerras, tanto faz) à credulidade e a singeleza de quem nelas procurava socorro e desafogo. A redenção, no entanto, ficava para depois. Existia o céu para quem acreditava no inferno. O etéreo era levado a sério. A vecchia deu várias voltas ao redor do mundo nas contas daquele terço, passou a vida inteira fazendo novenas, suplicando para Santa Rita, e jogando uruca nas costas do Biro-Biro. E eu era obrigado a colar os enfeites da árvore de natal com Super Bonder, e me vingava batendo punhetas para Maria Madalena, aquela putona. Era divertido e, de toda a cosmogonia da vecchia, apenas São Benedito era – para mim e para o velho Pascoal – o único irrefutável e sagrado. A prova inequívoca de que ele existe (ou existia) era a perninha de cabrito que a vecchia assava, impossível fazer aquilo sozinha. Eu vos digo, e testemunho: coisa de outro mundo.
No mundo do bispo Edir, porém, o velho Pascoal não existiria. Ele jamais teria oportunidade de cuspir caroços de azeitona no presépio. Qual a graça de acreditar no sobrenatural sem sacaneá-lo? Qual a graça de uma manjedoura sem as azeitonas, digo, sem o cagalhão dos boizinhos?
Esses bispos e pastores são desprovidos de senso de humor e humanidade. Se dependesse desses pastores-meganhas, Mário Monicelli jamais teria filmado “Amici Miei”. Não ia ter Capela Sistina. Nem peitinhos na Capela Sistina, por Deus!
O bispo Edir e seus congêneres comprometem a estética e a leveza das coisas. A novela “Os Mutantes” deve ter sido inspirada no próprio Macedo, dizem que ele têm pé de pato e garras de gavião no lugar dos dedos. Essa gente me dá medo.
Tudo bem que a Bíblia se presta a interpretações canhestras, mas as grosserias que os auto-intitulados bispos e pastores arrotam na frente das tevês eliminaram, sobretudo, os limites da beleza, além de histéricos e autoritários, são bregas e feios de doer. Como é que eu posso confiar num fulano que usa cinto e sapatos brancos?
A feiúra e a tristeza se refletem nos fiéis. De uns anos para cá, um verdadeiro exército de mulheres carrancudas de cabelos compridos-ensebados-grisalhos invadiu os pontos de ônibus e a paisagem urbana e… quiçá a paisagem rural. Quanto mais elas se escondem debaixo daquelas mortalhas cinzas (no inverno é pior), mais conseguem espalhar tristeza e desconsolo nos pontos de ônibus. Até o diabo que os neo-pentecostais exorcizam na tevê é privado de lascívia. Não é à toa que eles querem destruir os terreiros de candomblé. O motivo é evidente: ao contrário deles, o candomblé é vermelho, tesudo, bonito e humano.
Jesus Cristo sempre andou mal acompanhado. Decerto deve ter sua parcela de culpa. Senão vejamos: por que o filho de Deus, em vez das parábolas sinuosas e da aeróbica do Pe. Marcelo, não usa qualquer outra forma menos corrupta e mais verossímil para se comunicar? O latido, talvez. Malabares… sei lá.
Ô Vó, me ajuda! Interceda por mim junto a Nossa Senhora e a Santa Rita de Cássia, porque a coisa aqui nunca esteve tão feia, triste e difícil de encarar. Porco Dio, amém.
Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.