Fábio Góis
O artigo 9º do plano de carreira do Senado pode garantir o dobro da remuneração inicial dos servidores. É o que prevê a chamada Gratificação de Desempenho: a depender do rendimento do servidor, a direção da Casa pode autorizar adicional mínimo de 40% e máximo de 100%, em valores calculados com base no salário inicial. Há a possibilidade de que o percentual mínimo venha a ser de 60% a partir de janeiro de 2011, caso não seja editada resolução que regulamente os critérios do benefício. A tarefa caberia à Mesa Diretora, composta por 11 senadores substituídos a cada dois anos.
Além da Gratificação de Desempenho, outras duas gratificações fixas podem ser agregadas ao salário inicial do servidor, multiplicando-se a remuneração global registrada no contracheque: a de Representação e a chamada GAL (Gratificação por Atividade Legislativa) – esta última acrescenta valores aos funcionários simplesmente pelo fato de que estes prestam serviço ao Poder Legislativo. Os valores destas variam de acordo com a função, como descreve o plano (confira a versão do Projeto de Lei 372/2009 no site do Senado).
O texto do artigo 9º estabelece que a gratificação de 100% será concedida “de acordo com critérios e procedimentos a serem estabelecidos por resolução do Senado Federal”. Segundo o projeto, os servidores serão submetidos a “avaliação de desempenho funcional e do atingimento [sic] de resultados”. Caso não haja regulamentação até o início de 2011, por parte da Mesa, nada impede que o valor possa ser agregado ao salário inicial sem complicações burocráticas.
Mais do que senadores
A tabela comparativa de remunerações mostra como as gratificações elevam os salários. Um consultor legislativo, por exemplo, tinha salário inicial de R$ 16.521,88 e final de R$ 17.624,98. Com o novo plano, esses valores são elevados a, respectivamente, R$ 23.304,40 (variação de 41%) e R$ 24.310,81 (38%). Esse acréscimo leva em conta o percentual mínimo de desempenho (40%), calculado imediatamente sobre o salário inicial, e os valores das outras duas gratificações referentes ao cargo. No caso de 100% de Gratificação de Desempenho sobre o salário inicial, esses valores seriam muito maiores. Para efeito de comparação, o subsídio mensal dos senadores é de R$ 16,5 mil.
A SESCS, no entanto, garante ser difícil que o percentual máximo referente ao desempenho seja concedido. Segundo a assessoria de imprensa, além das avaliações da chefia sobre potenciais contemplados, que levará em conta questões como assiduidade e cumprimento de metas, uma regulamentação deve acompanhar a sanção do projeto de lei.
“Somente quando for regulamentado o dispositivo [gratificação] e considerados os indicadores de metas e produtividades é que se chegará ao intervalo real de índices aplicáveis, que não poderá ser inferior a 40% nem superior a 100%. Qualquer outro índice dentro desse intervalo é possível”, admite trecho de comunicado da Secretaria de Comunicação.
Seis mil contemplados
Aprovado em votação simbólica por alguns senadores, em 23 de junho, o plano foi também acatado pela Câmara, nesta quarta-feira (7), em regime de urgência. Na contramão das anunciadas medidas de enxugamento da megaestrutura funcional – cerca de 10 mil servidores e orçamento anual que orbita em cerca de R$ 2,5 bilhões –, o PL garante reajuste médio de 25% aos 6.511 servidores da ativa (mais da metade contratada sem concurso público, por indicação política, os chamados cargos comissionados).
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Oficialmente, a Diretoria Geral assegura que o maior salário do quadro funcional sobe de R$ 24 mil para cerca de R$ 26 mil (o salário teto do funcionalismo hoje é R$ 27.725). Mas com as garantias incorporadas, gratificações, adicionais e horas extras, os valores podem ser muito maiores. Em muitos casos, principalmente entre os servidores mais antigos e os da cúpula administrativa, os salários ultrapassam os subsídios de senadores, ministros e presidente da República.
“A média salarial dos servidores efetivos é de mais de R$ 20 mil, e isso é fato, é só pegar a tabela e fazer os cálculos. Um servidor de nível médio vai ganhar mais do que um juiz estadual de São Paulo ou um promotor de Justiça em Goiás, que recebem em torno de R$ 18 mil. Fora as diversas incorporações e as horas extras”, disse ao Congresso em Foco um servidor da Casa, que não quis se identificar. Surpreso com um plano de cargos e salários que beneficiará a ele mesmo, o servidor criticou a gastança. “Isso é queimar dinheiro público!”
“Queriam me engolir”
Depois da sanção presidencial, com restrições, ao reajuste dos servidores da Câmara, o novo plano avalizado pelos senadores – com custo extra estimado em R$ 464 milhões ao ano – representaria mais um golpe no já fragilizado quadro da Previdência Social e seus seguidos déficits financeiros. A questão também se contrapõe ao reajuste de 7,72% sancionado pelo presidente Lula, em meados de junho, às aposentadorias acima do salário mínimo – quase um quarto a menos do percentual concedido aos servidores do Senado.
Dos 11 integrantes da Mesa Diretora, apenas a 2ª vice-presidente do Senado, Serys Slhessarenko (PT-MT), opôs-se às versões do plano discutidas internamente, negando-lhes a assinatura de aprovação. Em violação ao preceito constitucional da publicidade, o texto acatado pela Mesa sequer foi publicado nos canais de informação institucional, impresso ou virtual (boletim eletrônico administrativo, Portal da Transparência, Diário Oficial do Senado, etc). Uma tabela de valores e funções relativa ao regime funcional anterior, que serviria como base para cálculos e comparações, foi inclusive retirada da pagina eletrônica. Apenas a versão original do projeto continua disponível.
No dia da votação em plenário, Pedro Simon (PMDB-RS) subiu à tribuna na condição de único senador não integrante da Mesa a rejeitar a matéria – e o fez com comunicado de abstenção depois de apelo do primeiro-secretário, Heráclito Fortes (DEM-PI), para não atrasar a tramitação. Diante de dezenas de servidores, Simon fez duras críticas não só ao plano, mas à própria reformulação administrativa do Senado.
Anunciado como resposta à crise institucional agravada no início de 2009, com o caso dos atos administrativos secretos, foram encomendados estudos à Fundação Getúlio Vargas (FGV) – ao custo de R$ 250 mil por trabalho –, sem que avanços tenham sido alcançados na prática.
“O plano foi feito pelos funcionários e a Mesa apenas referendou. Estava claro que havia uma disputa interna muito grande entre o grupo A, o grupo B, o grupo C… Eu defendia que teríamos de fazer primeira a reforma da administração, terminar com alguns exageros, para depois fazer um plano de carreira. Fui vencido neste sentido”, declarou Simon ao Congresso em Foco, voltando a condenar os gastos excessivos do Senado. “Por isso eu não votei.”
Lembrando o pronunciamento de cerca de uma hora feito em plenário, Simon destacou a falta de debate em torno da proposta. “Não poderíamos ter votado. Ninguém [da Mesa Diretora] deu palpite, ninguém discutiu, não passou por comissão. É uma pena”, acrescentou, resumindo em uma frase o clima que acompanhava a expectativa dos servidores. “Queriam me engolir.”
Discrepâncias
Simon destacou ainda a discrepância entre o regime salarial do Senado e os valores do salário mínimo (R$ 510) e do reajuste concedido aos aposentados, de 7,72%. “Não tem explicação. Depois do carnaval que foi feito em torno da aposentadoria, se seria dado 7% ou 7,7%, agora aprovam uma coisa dessas. Foi um absurdo”, protestou, adiantando ter preparado um livro em que defende alterações na estrutura administrativa e no funcionamento da Casa – entre elas, redução da cota de passagens aéreas e reuniões mensais da Mesa Diretora para discutir a pauta legislativa. O livro está “no prelo” (pronto para produção gráfica).
A mais nova versão da reformulação administrativa está em processo de elaboração pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), de acordo com as recomendações da FGV. Uma delas teria demonstrado que o Senado não precisaria de mais de nove diretorias para dar contra dos trabalhos. Mas, ao contrário das promessas de enxugamento da megaestrutura, a Casa ampliou de 181 para 214 as funções de diretoria, como este site revelou com exclusividade em 30 de junho.
“Hora de somar”
O conhecido corporativismo dos servidores do Senado ficou ainda mais evidente durante e depois das negociações do plano de carreira. Logo depois da aprovação, o presidente do Sindicato dos Servidores do Legislativo (Sindilegis), Nilton Paixão, acompanhado de Heráclito Fortes, viu chegar às mãos do presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP), o texto almejado pela categoria. O material foi imediatamente encaminhado à Secretaria Geral da Mesa e registrado com o número 7540/2010. Tudo devidamente festejado.
“Os servidores do Senado e o Sindilegis venceram uma grande batalha nesta quarta-feira (23). Com o apoio fundamental de diversos senadores, do primeiro-secretário e do próprio presidente do Senado Federal, o plenário aprovou o Projeto de Lei 372”, diz trecho introdutório da matéria intitulada “Vitória da categoria!”, veiculada no site do sindicato às 20h40 daquele dia. “Desde o início da manhã de hoje, o presidente Paixão e diretores do Sindilegis estavam [sic] no Senado recolhendo as assinaturas de líderes necessárias para apresentação do requerimento de urgência (…), que garantiria a inclusão da matéria na pauta do plenário.”
Em outra frente de atuação, a diretora de Recursos Humanos do Senado, Dóris Marize Peixoto, classificou o plano de carreira como “a atualização do plano em vigor” e instrumento que “realinha a remuneração do Senado Federal com as demais carreiras de Estado”. Em e-mail de “esclarecimento” que circulou internamente no início de junho, ela diz a um grupo de servidores que estão entre seus destinatários que “a hora é de somar, e não de dividir”, e emenda que o ônus pela aprovação do plano será dos senadores.
“A etapa de participação dos servidores na formulação inicial da proposta foi, sem dúvida, muito esclarecedora e essencial para a construção do modelo adequado, e a decisão será de quem terá o ônus político de suportá-la. Será da Comissão Diretora e, em última instância, dos senadores, em plenário”, diz ela.
A reportagem enviou entrou em contato por e-mail e telefone com o Sindilegis, mas a assessoria informou que o presidente da entidade, Nilton Paixão, não tem falado com a imprensa. “Até porque está há pouco tempo na função”, disse um assessor.
Prazo legal
O plano de cargos e salários só terá vigência plena em janeiro de 2011, caso sua sanção obedeça às normas definidas pela legislação. Segundo a resolução 23.089 (publicada em 6 de abril), referente ao calendário eleitoral deste ano, 180 dias antes da realização das eleições (3 de outubro) é a “data a partir da qual, até a posse dos eleitos, é vedado aos agentes públicos fazer, na circunscrição do pleito, revisão geral da remuneração dos servidores públicos que exceda a recomposição da perda de seu poder aquisitivo ao longo do ano da eleição (Lei nº 9.504/97, art. 73, VIII e Resolução nº 22.252/2006)”.
O plano de carreira foi protocolado em 31 de agosto na Subsecretaria de Atas do Senado, quando foi aberto prazo para apresentação de emendas – o que não aconteceu. Ou seja, a “revisão geral” foi iniciada dentro do prazo legal, mas a sanção presidencial ainda não foi efetuada.
Além da norma do TSE, outras três restrições à atualização salarial se impõem em ano de eleições, cada qual com sua natureza: a de cunho moral (Lei 9.504/97) com vistas à igualdade de condições entre candidatos, que proíbe reajuste salarial superior à inflação do ano eleitoral nos seis meses anteriores ao pleito (a partir de 6 de abril deste ano); a que se refere ao monitoramento das finanças públicas (Lei Complementar 101/00), a fim de evitar ônus financeiro para gestões futuras, que anula qualquer resolução de reajuste nos seis meses anteriores ao fim do mandato do chefe do poder ou órgão em questão; e a de viés orçamentário (Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2010 – 12.017/09), que admite reajuste em ano eleitoral apenas se a matéria que o regulamente tiver iniciado tramitação no Congresso até 31 de agosto do ano anterior.
Com base em dois destes casos, o projeto de lei pode vir a ser contestado judicialmente. Dos pontos contestados, o único que, a princípio, seria admitido sem problemas é que fala de ônus futuros. Como Michel Temer (PMDB-SP) e José Sarney (PMDB-AP), têm mandatos, respectivamente, de presidente da Câmara e do Senado até fevereiro de 2011, eles não estariam agora referendando uma despesa que será herdada por outros no início do ano que vem.
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