Esquivel e o “Efeito Nobel”
Esquivel foi o quarto dos cinco prêmios Nobel da Argentina (paz, medicina e química) e o segundo da Paz. Ele obteve a distinção nessa área 44 anos depois do primeiro ganhador, o político Carlos Saavedra Lamas. Este era membro da oligarquia de Buenos Aires e chanceler do governo conservador pró fascista. Recebeu a distinção em 1936 por ter contribuído para o fim da guerra entre o Paraguai e a Bolívia (Guerra do Chaco, 1932-1935). Esta “pacificação”não teve motivações éticas, mas puramente diplomáticas e econômicas, pois aguerra à qual essa paz deu fim foi resultado da cumplicidade entre Brasil e Argentina, ambos ávidos pela hegemonia na América do Sul.
Aqueles eram tempos difíceis para a organização fundada por Alfredo Nobel, pois, embora algumas das distinções fossem valiosíssimas (como a dada ao fundador da Cruz Vermelha, Jean Dunant, em 1901), a maioria era concedida a celebridades oficiais dos estados e burocratas que conseguiram algumas pacificações por causa de interesses nacionais e não humanitários. Após a derrota do Eixo, os critérios para a atribuição do prêmio Nobel da Paz viraram mais críticos, embora algumas contradições subsistissem até os dias de hoje.
Mas o caso de Pérez Esquivel não tem nenhuma similaridade com o primeiro Nobel argentino. Esquivel é um talentoso arquiteto e escultor, dedicado a monumentos e memoriais com nítido significado social, e nada é tão oposto à burocracia e o mandonismo como a arte e o ativismo. Ele descende de imigrantes espanhóis pobres e de indígenas, o que o coloca no polo oposto das oligarquias que são donas pela força deste continente desde 1492.
Deve-se a ele o Monumento aos Refugiados, que se encontra na sede do Alto Comissionado da ONU para os Refugiados (ACNUR), em Genebra, e vários conjuntos famosos esculpidos em homenagem aos povos oprimidos, aos indígenas e à paz, erigidos em diversos lugares do planeta.
Também foi um excelente professor que deixou seu emprego para mergulhar plenamente na defesa dos direitos humanos, e um perseguido cuja dignidade resistiu a múltiplas repressões, no Brasil (1975), no Equador (1976) ena Argentina (1977-78), onde foi torturado e permaneceu como prisioneiro sem julgamento. Esquivel representa um enorme grupo, ao que o dedicou o prêmio durante o discurso de recepção: A “mis hermanos indígenas, los campesinos, los obreros, los pobres, los jóvenes”, ou seja, ao grupo majoritário de vítimas da violência capitalista.
Ele não é apenas um Nobel, mas está entre os poucos premiados que, desde 1960, tiveram méritos superlativos para receber o legado do velho Alfred, um mérito que virou consensual e que a própria direita tem dificuldade em atacar.
PublicidadeOs outros que, segundo acredito, tiveram popularidade equivalente, no caso de prêmios individuais da Paz, são: Martin Luther King (1964); Andrei Sakharov (1975); Maired Maguire (1976); Betty Williams (coparticipado em 1976); Desmond Tutu (1984); Nelson Mandela (1993); Mohamed ElBaradei(2005); Shirin Ebadi (2003); e Malala Yousafzai (2014). De cerca de sessenta prêmios individuais dados nesse período, há muitos outros cujo mérito é indubitável, mas que não tiveram a mesma repercussão que estes. Também há um grupo cuja premiação foi resultado da precipitação e falta de cuidado do Comitê Nobel, o que gerou numerosas críticas.
De fato, o prêmio foi muitas vezes concedido sob critérios que não tinham nada a ver com os sentimentos que Alfred Nobel começou a nutrir no final de sua vida, por influência de sua namorada, a famosa pacifista e escritora austríaca Bertha von Suttner, ela mesma Prêmio Nobel da Paz em 1905. Bertha, que também era música, sempre estimulou o bem-sucedido químico sueco apagar sua pesada dívida com a humanidade pelo fato de alguns dos produtos de suas empresas terem sido usados com finalidades militares. Vide testamento de Albert Nobel.
O cuidado da Fundação Nobel em não repetir erros foi relativo: nas últimas décadas foram laureados chefes de países em guerra, e até dois presidentes dos EUA. Em compensação, no caso das instituições (como Amnesty Internacional, Médicos sem Fronteiras e muitas outras) a atribuição foi quase sempre irretocável.
Esquivel foi importante em diversos conflitos ao redor do mundo. Em 1974 foi nomeado coordenador geral da rede de comunidades latino-americanas que promoviam a libertação dos pobres por meio da não violência ativa. O trabalho de Esquivel ficou em destaque durante a sexta ditadura argentina(1976-1983) por seu auxílio às centenas de milhares de vítimas dos militares, dos sobreviventes e de seus familiares, mas também às vítimas de outras ditaduras próximas e coligadas com a argentina, como a brasileira, a chilena e a paraguaia.
Pouco antes disso, ele havia participado da fundação da ONG Serviço de Paz e Justiça (Serpaj) que influiu em que os direitos humanos fossem apreciados na América Latina, uma região na qual sempre tinham sido (e são) criminalizados. O Serpaj passou a formar parte da rede conhecida como Sociedade para a Reconciliação, fundada em 1914 pelo movimento Quaker, com propósitos claramente pacifistas e antimilitaristas.
Acabada a ditadura argentina em 1983, os partidos tradicionais eleitos democraticamente tentaram ofuscar a tarefa dos defensores independentes dos direitos humanos, em especial dos grupos de Mães, Avós e Filhos de Praça de Maio, para retribuir a tolerância que receberam da ditadura, cuja usurpação do poder tinham justificado durante uma década. Nessa época, Esquivel deveu atuar como simples cidadão, porque os cargos oficiais do primeiro governo civil (1984-1989) foram distribuídos entre burocratas que fizeram um elenco (incompleto) dos milhares de desaparecidos, e propuseram algumas medidas tímidas que acabaram “em pizza”, apenas para criar uma imagem de justiça for export.
Deve-se a Esquivel, junto com as Mães de Praça de Maio e outros grupos independentes, o feito de ter sido possível julgar e condenar dúzias de criminosos de lesa humanidade de 2005 em diante. Em realidade, os condenados são uma parte ínfima do total de carrascos, mas é muito mais do que foi feito em outros países, salvo na Alemanha pós-nazista.
Seu ativismo se estendeu à proposta de políticas sociais e econômicas em confronto com o neoliberalismo e com a opressão imperialista na região. Em contraposição com as falsas políticas ambientalistas (o grande negócio dos bancos e dos traficantes de licenças para empresas), Esquivel defendeu um ecologismo autêntico com ênfase nas comunidades indígenas. Ele fez denúncias públicas contra os abusos do poder financeiro internacional, e até desmascarou o propósito do governo americano de encobrir as verdadeiras raízes do terrorismo. Além disso, sua posição permanente como consultor da ONU, uma atividade em que tem sido extremamente eficiente, fez possível que a luta pela democracia de nosso subcontinente fosse valorizada pela primeira vez. Além disso, é Presidente da Liga Internacional pelos Direitos e a Liberação dos Povos e de várias organizações similares, e membro de numerosas entidades defensoras de direitos humanos e ecológicos.
A SERPAJ, da qual Esquivel foi o principal criador, é uma organização que objetiva a Educação para a Paz e desde há vários anos pertence ao conjunto dos órgãos consultivos da ONU junto ao Unesco, e ao Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (Cesnu), com direito de fala em todas as reuniões.
Apesar de considerar-se uma entidade ecumênica e interessada no diálogo inter-religioso, a Serpaj mantém boas relações com o mundo secular. Por exemplo, Esquivel tem mostrado, em várias entrevistas, certa abertura ao problema do aborto, o que é um avanço em relação com outros movimentos cristãos. Várias das propostas da Serpaj se entroncam com as posições da esquerda acumuladas desde o século 19 até os dias atuais, das quais, as principais são:
- A desmilitarização, a oposição ao recrutamento, a luta pelo desarme e (como foi estabelecido na proposta de Alfred Nobel) o fim dos exércitos. Veja o parágrafo 16 do testamento original de Nobel de 1895;
- O equacionamento e a resolução de conflitos;
- A eliminação dos vestígios autoritários na sociedade e o julgamento rigoroso dos crimes de lesa humanidade;
- A inclusão de todos os excluídos por causas étnicas, nacionais, de classe, de gênero, etc.;
- A promoção da cultura da paz, da justiça social e econômica e dos direitos humanos.
A desmilitarização foi um projeto de enorme relevância na história da humanidade, mesmo antes do surgimento da esquerda socialista (por exemplo, nos movimentos antimilitaristas nos EUA a partir de 1812). Porém, a pressão pela desaparição dos exércitos diminuiu pouco por volta de 1950 por causa decertos tons chauvinistas dos países ex-coloniais (em especial, na América Latina). Neste modelo, se traçou uma diferença artificial entre exércitos “do mal” e “do bem”, objetivando fortalecer as lideranças nacionais, em vez de propugnar a abolição total das forças armadas e de denunciar seus efeitos destrutivos para a totalidade do planeta. Essa tendência está arrefecendo desde o final da Guerra de Vietnam e desde a crise de sistemas autoritários que a direita identificava como movimentos de esquerda, embora não fosse.
Neste sentido, Esquivel e o Serpaj estão dentro da melhor tradição dos fundadores do prêmio Nobel, que nem sempre foi respeitada depois: a paz não é acabar com as guerras; para obter a paz o único caminho possível é fecharas instituições que as estimulam. Esquivel se posicionou de maneira radical no Rio do Janeiro contra a utilização do exército como método de opressão civil, argumentando que nunca o exército é pacificador. Essa manifestação é um ato de muita coragem, numa região do mundo onde a violência e o despotismo possuem quase absoluta prioridade sobre qualquer raciocínio ou sensibilidade.
Esquivel no caso de Lula
Esquivel é amigo de Lula desde há muitos anos, mas seu compromisso com ele é do mesmo tipo que o do seus milhões de eleitores. O presidente da Serpaj, como outras celebridades, ficou impressionado pelo fato de o brasileiro ter sido o único líder do continente capaz de tirar da faixa de miséria absoluta 30 milhões de pessoas. E também ficou aterrorizado pelo fato oposto: a velocidade com que a máfia golpista tem destruído todas as conquistas do povo brasileiro desde 1930, em apenas dois anos.
A probabilidade de Lula obter o prêmio não pode ser prevista, pois o processo de seleção se realiza sob o maior sigilo e apenas os candidatos e seus mentores têm o direito de revelar sua identidade. O único dado público é o número de candidatos. Sabemos que há cerca de 300 para o prêmio que será deferido em 2018, mas não é possível deduzir quantos serão em 2019, quando a proposta de Esquivel será julgada. Ainda assim, podemos nos orientar por alguns casos parecidos que já foram deferidos no passado.
O caso de Lula se parece muito ao da militante Aung San Suu Ki, líder de oposição à junta militar de Myanmar, filha do principal ativista pela democracia e a libertação do país, Bonyoke Aung San (1915-1947). Ela possui um curriculum de luta democrática e popular comparável ao de Lula, sendo similares os índices de popularidade de ambos os líderes.
Uma coincidência incrível é que, em 1990, Suu Ki foi detida pelos golpistas birmaneses sob um pretexto qualquer, para evitar que pudesse ganhar as eleições.
Quando recebeu o Nobel em 1991, a senhora Suu Ki estava em prisão domiciliar, mas é importante saber que o sadismo da ditadura birmana era menos truculento que o dos carrascos brasileiros. Ou seja, mesmo que seus méritos sejam iguais aos de Lula, o sofrimento suportado por Suu Ki sob a junta militar birmana foi menor que o padecido por Lula sob a Lava Jato.
Por outro lado, a partir dos anos 70, a Fundação Nobel tem outorgado muitos prêmios Nobel da Paz a figuras defensoras dos direitos humanos e sociais, numa medida comparável a às vezes maior que a de negociadores de armistícios ou tréguas bélicas. Também, tem aumentado as distinções aos que são claras vítimas da paranoia assassina dos diversos tipos de carrascos.Esse foi o caso de Nelson Mandela, Rigoberta Menchú, Malala Yousafzai e o já citado de Suu Kim, entre outros. Também está o caso de Prêmios de Literatura que tiveram este caráter de reparação de pessoas vitimadas, como foi o caso de Solkhenitzin e Pasternak na extinta União Soviética. Isto coloca a indicação de Lula muito mais dentro dos padrões atuais.
As Regras de Mandela
A proibição dos juízes para que Esquivel visitasse Lula foi claramente contrária à relação amigável que existe entre a ONU e os países que são, pelo menos, minimamente civilizados. Seu intuito é muito evidente. A despeito das perversões contra Lula (criticadas por Gilmar Mendes), e a exibição provocadora de descomunais fraudes judiciais (percebidas, em apenas dois dias, pelo eminente jurista Geoffrey Robertson), o prisioneiro continua com sua dignidade intata e seu habitual senso de humor. Isto enraiva ainda mais a ridícula casta de linchadores, pois a humilhação e o sofrimento do linchado é o máximo de todos os benefícios que algoz tira de sua vítima.
Por sinal, o sadismo dos que exercem autoridade foi muito bem esclarecido após a Segunda Guerra pelos sobreviventes do nazismo, e em especial pela Escola de Frankfurt. Segundo numerosos estudos, esse sadismo é originado em distorções emocionais e sexuais dos que o praticam. Mas, este é um tema extenso para ser tratado aqui.
Voltemos, então, às Regras de Mandela:
Após a parcial derrota do fascismo em 1945, percebeu-se que a maioria das leis são simples regras de proteção das classes dominantes (o Terceiro Reich estava cheio de leis que eram rigorosamente aprovadas antes de serem aplicadas), e a punição jurídica é apenas uma forma mais nova de vingança. Essa primeira compreensão alicerçou a Declaração Universal de Direitos Humanos, e sua inclusão dentro dela aos excluídos pela perseguição jurídica.
Em 30/08/1955, o Congresso sobre a Prevenção dos Crimes e o Tratamento de Infratores das Nações Unidas aprovou algumas normas, ainda muito fracas, para tentar diminuir a crueldade prisional. Estas regras experimentaram leves aprimoramentos até 2015, quando foram reformuladas num projeto mais humanista.
Nesse ano, a Assembleia Geral da ONU aprovou a resolução 70/175 sobre o “Padrão mínimo da ONU das regras para o tratamento de prisioneiros”, mas conhecidas como Regras de Mandela, em homenagem ao mais prestigioso prisioneiro de toda a história humana.
O monitoramento da aplicação das Regras de Mandela está descrito no Capítulo 1 do manual “Conferindo a obediência às regras de Mandela”, publicado pela ONU. Nele se transcreve a Regra 83, que admite dois tipos de inspeção: a interna, feita pelo mesmo governo que “custodia” o prisioneiro, e a externa, que é conduzida por um corpo exterior à administração penal, independente das autoridades do país, reino, colônia, etc., onde fica o presídio.
De acordo com essa regra, a equipe de inspeção deve conter competentes equipes regionais ou internacionais. Os juízes da Lava Jato, quando disseram que as Regras de Mandela não são vinculantes, descobriram a pólvora! A maioria das regras da ONU, nos diversos aspectos da atividade da Organização, são persuasivas e não vinculantes. As únicas realmente vinculantes são as que chegam ao Conselho de Segurança, e são apenas as que se referem a problemas complexos, onde se vislumbra o possível uso da força.
O que se espera é que um estado onde os poderes públicos têm um mínimo de dignidade e decência (5% da Holanda seria suficiente) cumpram as regulações humanitárias da ONU que esses mesmos estados aceitaram.
Brasil em nenhum momento se manifestou contra a resolução 70/175 no dia 17 de dezembro de 2015 nem depois, e também não apresentou nenhuma objeção à UN Commission on Crime Prevention and Criminal Justice (conhecida informalmente como Comissão sobre Crime) durante o encontro realizado sete meses antes, entre 18 e 22 de maio.
O diretor da Associação Americana pelas Liberdades Civis, David Fathi, que estava representando sua entidade no evento, reconheceu que as reuniões costumam ser litigiosas, mas que naquele caso (18 a 22 de maio de 2015) as Regras de Mandela foram aprovadas por aclamação.
O Brasil foi reconduzido na cota da América Latina em 2017 e, portanto, é provável que, como parte de seus deveres no período anterior, estivesse na sessão onde se aclamaram as Regras de Mandela. Se “por acaso” não assistiu, poderia ter apresentado um disclaimer depois, o que nunca aconteceu.
Os juízes de Curitiba também recusaram o direito de uma ONG de exercer uma função (como a vistoria) que, segundo eles, só corresponderia às agências oficiais. A Serpaj é um órgão consultivo do Cesnu, no mesmo nível que as grandes ONG’s de Direitos Humanos, como Anistia Internacional (AI), HRW e outras.
Justamente o caso de Anistia é o que melhor refuta esta mentira, pois AI mencionou várias vezes que, salvo no caso de apenas três países da comunidade internacional, sempre foi recebida (com simpatia ou antipatia) para realizar suas inspeções anuais… Até no Brasil é recebida, embora nem sempre com simpatia.
Enfim, no ambiente da ONU as pessoas mais perspicazes sabem que a diplomacia brasileira aplaude tudo, mas o Estado cumpre as regras que a favorecem, que não são as dos direitos humanos. Mas, devemos reconhecer que os diplomatas brasileiros sempre se justificam e dissimulam seu embaraço. Já para magistrados e procuradores, a violação dos direitos humanos é um motivo de honra!
Gente, não precisam exagerar em sua “liberdade de espírito”.
Veja os critérios de verificação das regras da 70/175.
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