A Câmara dos Deputados protagonizou nesta semana um dos episódios mais deprimentes de sua história: o pedido de cassação do deputado Natan Donadon foi rejeitado por não ter obtido o número mínimo de votos (257). A cassação do parlamentar, condenado pelo STF a 13 anos de prisão pelo desvio de R$ 8,4 milhões da Assembleia de Rondônia por contratos de publicidade fraudulentos, recebeu apenas 233 votos, contra 131 dados pela absolvição. Houve 41 abstenções. Uma afronta aos cidadãos!
Há dois anos, já tínhamos presenciado situação semelhante, quando, em votação também secreta, o plenário da Câmara rejeitou, por 265 a 166 e 20 abstenções, a cassação da deputada federal Jaqueline Roriz (PMN-DF), que aparecia em um vídeo de 2006 recebendo dinheiro do delator do mensalão do DEM Durval Barbosa. Em ignomínia, esses dois episódios talvez só se comparem à vergonhosa rejeição, pela Câmara, em 1984, da emenda que restabelecia as eleições diretas para presidente da República. A diferença é que, neste caso, nos estertores da ditadura, a votação foi a descoberto e os parlamentares que votaram contra a emenda foram alvo de justa execração pública.
A anomalia das votações secretas já foi constatada pela Casa há tempos, mas as propostas para se acabar com essa distorção até agora estão no limbo. Em setembro de 2006, por exemplo, a Câmara aprovou em primeiro turno a PEC 349, que acaba com o voto secreto em todas as votações do Congresso, incluindo apreciação de vetos presidenciais e cassação de mandatos de parlamentares condenados pela Justiça. Mas, por falta de vontade política, o projeto não obteve apoio para ir ao segundo turno.
Em julho do ano passado, às vésperas da cassação do senador Demóstenes Torres, o Senado fez uma nova tentativa, mais modesta, a PEC 196. Esta emenda extingue a votação secreta só para casos de cassação de mandatos de parlamentares. Ela já foi aprovada pelo Senado e pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara e agora foi instalada uma comissão especial para analisar seu mérito. Se este projeto for aprovado pela Câmara, já poderá entrar em vigor, mas se a Casa resolver desengavetar a proposta de 2006, será preciso ainda votá-la em dois turnos no Senado.
Muitos questionam o fim do voto secreto no Congresso. Esses críticos lembram que foram justamente as Constituições mais democráticas da República, as de 1946 e 1988, que consolidaram a regra de votação secreta dos parlamentares para determinados temas. Tratava-se de uma medida preventiva; nos dois casos, os processos constituintes se seguiram a longos períodos autocráticos – o Estado Novo e a ditadura militar. Por isso, o voto secreto dos parlamentares era visto como uma necessidade de manter o Poder Legislativo a salvo de pressões incontornáveis do Executivo.
Curiosamente, a exigência de voto secreto especificamente para o julgamento de processos de cassação de parlamentares foi estabelecida pela primeira vez na Constituição de 1967, outorgada pelos militares. E a Câmara soube fazer uso de suas prerrogativas e confrontar a ditadura quando, em 1968, recusou-se a aprovar o pedido de licença para cassar o deputado Márcio Moreira Alves, acusado de insultar os militares usurpadores. O voto secreto dos parlamentares seria revogado pela emenda nº 1, de 1969, baixada pela junta militar, logo depois da edição do famigerado Ato Institucional nº 5. Dali em diante, a ditadura usou o voto a descoberto como garantia de que os atos do Executivo fossem bovinamente aprovados por um Congresso acuado e manietado.
Foi por isso que a Constituição de 1988 resgatou o mecanismo do voto secreto dos parlamentares. Era uma espécie de imunidade do Parlamento contra pressões externas, principalmente do Executivo. Ocorre que, desde então, o Brasil avançou muito na consolidação e na expansão da democracia. Não é mais possível pensar no Legislativo funcionando como uma entidade pouco transparente e esquiva, em que parlamentares muitas vezes se refugiam na instituição do voto secreto para se eximir de prestar contas aos eleitores e à sociedade, como ocorreu nos casos de Jaqueline Roriz e Natan Donadon.
A sociedade foi às ruas por mudanças que aprofundem nossa democracia. Por isso, temos de aprimorar mecanismos para garantir a privacidade dos cidadãos e, ao mesmo tempo, a transparência do poder. E acabar com as votações secretas no Congresso é um primeiro passo nessa direção.