Imagine o que ocorreria se a morte, de um dia para outro, decidisse entrar em greve. E se uma cidade enfrentasse uma catastrófica epidemia de cegueira e, alguns anos depois, fosse isolada do país após a maioria dos habitantes votar em branco. Ou se Portugal e Espanha se descolassem da Europa e ficassem à deriva pelo Atlântico. E se um dia, ao assistir tevê, descobríssemos que não somos únicos, que temos um clone absolutamente perfeito caminhando por aí. Essas histórias foram imaginadas, de maneira genial, pelo escritor português José Saramago, falecido há pouco mais de um ano, o qual considero uma das mentes mais lúcidas, criativas e originais da literatura. Adoro seus romances (cheguei a ler seis em sequência), mas confesso que minha relação com o autor é recente, apenas de 2009. Até então, não queria nem ouvir falar dos livros desse português.
Escuto com frequência que o Saramago é chato, que os parágrafos dele são enormes, que ele não gosta de ponto final, que ele é difícil de ler. Entendo perfeitamente. Pensei assim por muitos anos. Eu olhava os livros dele e – suprema petulância e ingenuidade – me vinha uma vontade incontrolável de dar parágrafo, de colocar ponto, de padronizar o texto, de trazê-lo para a normalidade. Puro preconceito. Foi só fazer um esforço e ler um livro inteiro do escritor para me apaixonar irremediavelmente. Fiquei meses obcecado, devo ter tentado convencer praticamente todos os meus amigos a lerem um livro dele.
Resolvi encarar meu primeiro Saramago por (muita) insistência dos amigos que, como eu, o têm em alta conta. Pedi de amigo oculto “qualquer” livro do escritor e acabei ganhando Ensaio sobre a cegueira. Comecei com dificuldade, tentando me adaptar ao estilo incomum do autor, em que a vírgula dá o tom da história, substituindo travessões, imprimindo ao texto uma fluência que muitas vezes chega perto da linguagem oral. Em poucos capítulos, entendi que o texto de Saramago não precisa de parágrafo, nem de ponto final, que a lógica do autor é fluida, inteligente, eficiente. Que letra maiúscula após a vírgula e nome próprio começando com minúsculas faz todo o sentido do mundo. Por que, Porque flui o pensamento, Você acha, Acho.
Ensaio sobre a cegueira é um livro para ser lido com o cérebro e com o estômago, com trechos de pura aflição e momentos em que é impossível não refletir sobre a condição humana, sobre até onde o ser humano é capaz de ir em momentos extremos, em que tudo o que somos ou vivemos perde a validade, quando se está em jogo a luta desesperada pela sobrevivência. Saramago diz ter “sofrido” muito ao escrever o livro, mas que era importante mostrar “que não somos bons e que é preciso ter coragem para reconhecer isso”. A crítica social é bastante presente na obra do autor.
Aberta a porteira, li na sequência – e recomendo – vários outros livros de Saramago, como As intermitências da morte (o que a morte entre em greve), Ensaio sobre a Lucidez (o da maciça votação em branco), O homem duplicado (o do clone), A jangada de pedra (o da Península Ibérica à deriva) e A viagem do elefante, baseado na história real, ocorrida em 1551, da viagem de um elefante – presente do rei português João III ao arquiduque Maximiliano da Áustria – de Lisboa a Viena.
Dois livros do autor merecem atenção especial: Caim e O Evangelho segundo Jesus Cristo. Ateu, Saramago era forte crítico da Igreja Católica, com quem mantinha uma relação tensa, e também da Bíblia, que considerava “um manual de maus costumes” e “um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana”. A visão saramaguiana de Caim, Jesus, Maria Madalena e de diversos outros personagens bíblicos não é, digamos assim, convencional, e evidentemente pode ferir a suscetibilidade de alguns. Mas o valor literário das obras é incontestável. É Saramago em plena forma e crítica mordaz.
Meu livro preferido de Saramago é Todos os nomes. Acho verdadeiramente sensacional a história do Sr. José (sim, com maiúsculas, um dos últimos personagens do autor que tiveram esse privilégio), modesto escriturário da Conservatória Geral do Registro Civil português, que tem como hobby colecionar recortes sobre pessoas famosas, que complementa com informações retiradas de seus registros na conservatória. Um dia, sem querer, junto com a ficha de um dos famosos, o protagonista leva pra casa a de uma mulher anônima, e tem a vida revirada pela curiosidade, pela necessidade patológica de conhecer mais sobre ela, de transformar em realidade o que, até então, não passa de letras no papel. A transformação vivida pelo personagem nessa busca – de um profissional tímido e exemplar a um descarado infrator de regulamentos – é retratada por Saramago de forma magistral. Acho o livro perfeito para quem quer descobrir o autor.
PublicidadeEpílogo
A versão cinematográfica de Ensaio sobre a cegueira, do brasileiro Fernando Meirelles, retrata muito bem o livro e é eficiente em despertar no espectador as mesmas tensões e angústias vividas pelos leitores. O Evangelho segundo Jesus Cristo também pode virar filme em breve, nas mãos do português Miguel Gonçalves Mendes, realizador do documentário José e Pilar, que mostra intimidades do autor com a esposa Pilar del Río.
Antes de morrer, Saramago trabalhava em um livro sobre a indústria armamentista e o tráfico de armas, intitulado Alabardas, alabardas! Espingardas, espingardas!, em homenagem a um verso do poeta português Gil Vicente. Segundo Pilar del Río, as cerca de 20 páginas escritas serão publicadas em 2012.
No último dia 18 junho, a morte de Saramago completou um ano. Vi pouquíssima cobertura na imprensa sobre o tema e também pouco movimento nas redes sociais. Uma pena.
Livros citados
Ensaio sobre a cegueira (1995), As intermitências da morte (2005), Ensaio sobre a Lucidez (2004), O homem duplicado (2002), A jangada de pedra (1986), A viagem do elefante (2008), O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), Caim (2009) e Todos os Nomes (1997). Editora Companhia das Letras