Paulo Henrique Zarat
Pode parecer incrível, mas o escândalo das ambulâncias tem chance de trazer bons frutos. Sob a coordenação da deputada Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) e do senador Eduardo Suplicy (PT-SP), um grupo de assessores técnicos do Congresso trabalha na elaboração de um conjunto de medidas com o objetivo de evitar fraudes no orçamento federal. Eles integram a sub-relatoria de orçamento da CPI dos Sanguessugas.
Em entrevista ao Congresso em Foco, Vanessa Grazziotin adiantou que uma dessas medidas será a proibição de apresentação de emendas parlamentares destinadas à compra de equipamentos para organizações não-governamentais (ONGs) ou organizações da sociedade civil de interesse público (oscips). Oscip é o figurino institucional de muitas entidades filantrópicas brindadas com o dinheiro sujo de equipamentos médicos e hospitalares superfaturados.
"Vamos sugerir que essas entidades recebam apenas subvenções da União. Por exemplo, por que é necessária uma emenda para comprar um tomógrafo para uma Santa Casa se o hospital público não tem esse aparelho?", questiona a deputada.
Restrições às emendas individuais
Ela acrescenta que não está descartada a idéia de eliminar a possibilidade de apresentação de emendas individuais ao orçamento federal por deputados e senadores. "A princípio, nós entendemos que acabar, pura e simplesmente, com as emendas individuais significaria restringir o processo democrático na elaboração e votação do orçamento", diz.
Segundo Grazziotin, a intenção inicial é "estabelecer regras e prioridades" para as emendas. A deputada exemplifica: "Se o parlamentar quer destinar recursos do orçamento a determinado município para compra de ambulâncias, o Estado tem que verificar antes se aquele município realmente precisa de ambulância. Para isso, é necessário ouvir o Conselho Municipal de Saúde daquela cidade".
"Mas se, ao final, a gente constatar que não tem como acabar com as brechas que possibilitam as fraudes no orçamento, vamos propor o fim das emendas individuais. Essa será a última alternativa, que não descartamos ainda", completa.
Outras medidas
O relatório final da sub-relatoria incluirá também a proposta de garantir a todos os municípios brasileiros acesso ao Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi), programa que permite acompanhar a execução de despesas na administração direta federal, e a sugestão de mecanismos de controle no Executivo para prevenir fraudes. Um deles poderia ser o estabelecimento de parâmetros de preços para a compra de determinados bens. "Nós vamos propor que o Executivo seja mais rígido nas regras, que não permita tamanha diferença de valores como acontece com a compra de ambulâncias", afirma a deputada.
Outra decisão tomada é de apoiar com vigor a aprovação do projeto, já em tramitação no Congresso, que prevê o rodízio nos cargos da poderosa Comissão Mista de Orçamento, órgão do Legislativo federal que delibera sobre todas as matérias relativas a questões orçamentárias.
A ponta do iceberg
Na entrevista abaixo, a professora e farmacêutica Vanessa Grazziotin, 45 anos, atualmente no segundo mandato de deputada federal, fala ainda que os R$ 110 milhões desviados pela máfia dos sanguessugas podem ser apenas a ponta do iceberg.
Ela lembra que o montante representa 20% do valor global dos convênios da União com os estados e municípios. "O escândalo da máfia das ambulâncias é de pequeno porte em relação ao que alguns relatórios da Controladoria Geral da União já apontaram, como irregularidades nos repasses para os fundos estaduais e municipais", revela.
A sub-relatora explica como o orçamento é usado para fraudar os cofres federais comprando ambulâncias e outros equipamentos por meio de licitações dirigidas e pagamento de propinas a parlamentares. Conta, por exemplo, que as maiores bancadas (como as de SP, MG e RJ) inventaram a "rachadinha", uma "grande emenda guarda-chuva para comprar equipamentos médicos e hospitalares ou ambulâncias". "Depois, na hora de liberar os recursos, cada parlamentar indica os municípios para onde devem ser destinados os recursos", esclarece.
Na sua opinião, o Executivo está totalmente desprovido de meios para fiscalizar a aplicação dos gastos federais. "Os sistemas de controle de liberação de recursos foram paulatinamente destruídos", acusa a parlamentar, responsabilizando a "terceirização de funções que são do Estado, sobretudo nos últimos governos".
Veja os principais trechos da entrevista:
Qual o trabalho que está sendo desenvolvido pela sub-relatoria de orçamento da CPI?
Nossa atribuição é fazer uma análise de como se desenrola o processo de elaboração do orçamento, da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e do Plano Plurianual aqui no Congresso de forma que a gente apresente sugestões concretas no sentido de fechar todas as brechas que permitem a existência de esquemas como esse dos sanguessugas e outros que já tivemos no passado. A partir de um diagnóstico, vamos sugerir as modificações para tentar acabar com as fraudes no orçamento. Há mais de duas semanas estamos ouvindo consultores do Senado Federal e da Câmara dos Deputados. Nos reunimos também com a Controladoria Geral da União (CGU) e parlamentares para montar nossa proposta. As dúvidas principais ainda não estão resolvidas. Nós estamos vivendo um dilema terrível que é o que fazer com as emendas parlamentares individuais. Acabamos ou mantemos as emendas individuais? Uma coisa a gente sabe: do jeito que está, não pode ficar.
Quais as brechas que permitem o aparecimento de esquema como esse dos sanguessugas?
Primeiramente, vamos falar como surgiram as emendas individuais e de bancadas, porque a culpa não é apenas das emendas individuais. O levantamento feito pela CPI mostrou que a vulnerabilidade está nessas duas modalidades de emendas e na postura do sub-relator de seguridade social da Comissão Mista de Orçamento, que apresentou várias emendas que foram objeto da quadrilha da Planam. Também há aqueles convênios cujos recursos não são oriundos de emendas e sim do próprio orçamento da União. Isto é, que foram definidos e determinados pelo governo. Esses recursos também foram objeto da máfia das ambulâncias. Mas o grosso mesmo vem da utilização indevida por parlamentares de recursos do orçamento. A tal ponto que se chegou a um momento, como em 2002, em que deputados cobraram propina da Planam antecipadamente. Pelo que nós colhemos nos depoimentos, funcionava assim: "Olha se você não me adiantar 5% agora, boto minha emenda para outra empresa". Então, isso nós temos que acabar.
Quais são as cotas para emendas individuais e de bancada?
Nas individuais, cada parlamentar tem uma cota de 20 emendas para um valor máximo de R$ 5 milhões. De acordo com os consultores da CPI, nos últimos anos, está havendo uma concentração. Isto é, grande parte dos parlamentares não usa a cota das 20 emendas. Em duas ou três emendas são gastos os R$ 5 milhões. Por exemplo, o parlamentar apresenta uma emenda de R$ 1,5 milhão só para a compra de ambulâncias e outra de mesmo valor para a compra de equipamentos hospitalares. Já as emendas de bancadas são limitadas a um número variável, que pode ser de 16 a 23, de acordo com o tamanho da bancada. Quando a bancada do estado é pequena, ou seja, quando o número de parlamentares é inferior ao número de emendas que a bancada pode apresentar, cada um apresenta uma sugestão. Agora, quando o número de parlamentares da bancada é superior ao número de emendas, como é o caso dos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, eles fazem a chamada rachadinha, que é uma grande emenda guarda-chuva para comprar equipamentos médicos e hospitalares ou ambulâncias. Depois, na hora de liberar os recursos, cada parlamentar indica os municípios para onde devem ser destinados os recursos. Então, o que fazer? A princípio, nós entendemos que acabar, pura e simplesmente, com as emendas individuais significaria restringir o processo democrático na elaboração e votação do orçamento. Essas emendas surgiram exatamente num momento de escândalo parecido com esse, depois da CPI do Orçamento, em 1993. Antes dela, não havia emendas individuais. Existia um super poder para alguns parlamentares. E somente eles é que podiam apresentar emendas de valores altos em grandes negócios que envolviam empreiteiras. Dessa forma, a elaboração do orçamento da União não era um processo democrático porque apenas os caciques tinham o poder de sugerir emendas. Além disso, muitas vezes, os recursos eram desviados para entidades privadas ligadas ao filho, ao sogro, ao marido ou à esposa do parlamentar. Então, não é tão simples acabar com as emendas individuais. Mas se, ao final, a gente constatar que não tem como acabar com as brechas que possibilitam as fraudes no orçamento, vamos propor o fim das emendas individuais. Essa será a última alternativa, que não descartamos ainda.
Quais as alternativas para acabar com os desvios de recursos do orçamento?
Nós vamos sugerir a limitação de emendas para ONGs e Oscips, porque não podemos acabar completamente com essa modalidade de sugestão ao orçamento. De que forma? Vamos propor a proibição de elaboração de emendas para despesas de capital (investimentos e todas as despesas que não sejam correntes, isto é, rotineiras, como salários, pagamento de juros, gastos administrativos etc.) que têm a finalidade de equipar essas entidades. Vamos sugerir que essas entidades recebam apenas subvenções da União. Por exemplo, por que é necessária uma emenda para comprar um tomógrafo para uma Santa Casa se o hospital público não tem esse aparelho? A Santa Casa é que tem que adquirir o tomógrafo com recursos próprios, para, aí sim, a União poder repassar recursos àquela Santa Casa e custear o uso do tomógrafo pela população. Até porque não existem hospitais públicos suficientes para atender todo mundo. Outra coisa. Há um projeto de resolução que tramita aqui na Câmara que propõe a alternância das sub-relatorias na comissão de orçamento. Um partido que pegou uma sub-relatoria da Comissão Mista de Orçamento este ano não poderá ficar com a mesma no ano que vem. Pretendemos também dar mais forças às comissões permanentes. Hoje, esses colegiados não querem mais saber de orçamento e eles é que deveriam estar discutindo questões de educação e saúde. O Executivo está encaminhando um projeto de lei para o Congresso Nacional que visa proibir a elaboração de emendas parlamentares individuais e de bancada para estados e municípios permitindo apenas a União destinar recursos. Isso é inconstitucional. O que está errado não é a emenda em si e sim o poder dado a deputados e senadores para destinar recursos a quem quiser. Devemos estabelecer regras e prioridades para apresentação dessas emendas. Se o parlamentar quer destinar recursos do orçamento a determinado município para compra de ambulâncias, o Estado tem que verificar antes se aquele município realmente precisa de ambulância. Para isso, é necessário ouvir o Conselho de Municipal de Saúde daquela cidade. No ano passado, nós tivemos o mesmo problema com aquisições de ônibus escolares. Isso parou. Por quê? Porque há uma regra rígida do Executivo nos convênios para aquisição desses ônibus. Mas, para ambulâncias e equipamentos hospitalares, as regras são muito maleáveis. Uma emenda para compra de ambulância pode variar de R$ 35 mil até R$ 60 mil. Aí, o parlamentar apresenta uma emenda de R$ 60 mil, mas a ambulância custa R$ 35 mil. E aí, cadê o restante desse dinheiro? Muitas vezes, essa diferença é repartida entre os parlamentares.
Quais são os critérios que devem ser estabelecidos para evitar isso?
Nós vamos propor que o Executivo seja mais rígido nas regras, que não permita tamanha diferença de valores como acontece com a compra de ambulâncias. Vamos propor também aumentar a transparência dos gastos do orçamento. Por exemplo, temos o Siafi (Sistema Integrado de Administração Financeira, programa que permite acompanhar a execução de despesas na administração direta federal). É um bom sistema, que informa onde o dinheiro está sendo aplicado, mas quem tem acesso a ele? São poucos. Vamos sugerir que esse acesso seja ampliado. Cada município, no mínimo, deverá ter uma senha para acessar o Siafi. Isso permitiria à população acessar o sistema. Estamos discutindo também a criação de fóruns para poder repassar as senhas do Siafi.
Em relação ao Executivo, que medidas a sub-relatoria vai propor para aumentar a fiscalização da liberação dos recursos?
Os sistemas de controle de liberação de recursos foram paulatinamente destruídos. Se pegarmos como exemplo a própria Controladoria Geral da União, veremos que ela é recente. Alguns anos atrás, houve uma primeira tentativa de investigação desse esquema dos sanguessugas, feita pelo Ministério Público e pela Polícia Federal, envolvendo os estados do Acre e de Rondônia. Mas, como teve troca de delegados da PF e de procuradores do MP, as investigações pararam. Com os sorteios que a CGU faz para realizar auditoria nas contas dos municípios, foi detectado que a Planam era uma grande fornecedora de ambulâncias. Além disso, a CGU detectou que nos processos de licitação eram sempre as mesmas empresas que davam guarida à Planam. Só agora foi descoberto que essas empresas são todas do mesmo dono, que estão em nome de empregados domésticos e parentes dos proprietários da Planam. Hoje, a CGU tem a possibilidade de agregar esforços com outros órgãos, como o MP e PF, cujo objetivo também seja a fiscalização. Quando a CGU descobriu o esquema da máfia das ambulâncias, despachou ofícios para o MP e para a PF. A partir daí que esses dois órgãos começaram as investigações. A PF passou a realizar escutas telefônicas que foram fundamentais para o desbaratamento da quadrilha. Isso é muito importante para que o trabalho não seja interrompido de acordo com o humor de quem está no governo. Em relação ao Executivo, nós temos que transformar esse controle numa obrigatoriedade, com previsão de punições para os casos de omissão.
Desde quando a estrutura de controle de aplicação dos recursos federais é precária?
Há muito tempo, sobretudo nos últimos governos, por causa da tal terceirização de funções que são do Estado. Com isso, não se pode gastar dinheiro nem aumentar essas estruturas de fiscalização. A própria CGU, que possui um quadro com 1.500 servidores, deveria ter 5 mil funcionários para exercer uma fiscalização eficaz. A CGU é que controla os órgãos que deveriam fiscalizar os gastos públicos.
Quais são os mecanismos de controle que existem hoje?
Bom, nós estamos falando de ambulância e de um esquema que envolve aproximadamente 20% (R$ 110 milhões) do valor de todos os convênios da União. O que é uma migalha se compararmos, por exemplo, quanto é o repasse da União aos fundos estaduais e municipais na área de saúde. Isso não é fiscalizado. Então, a hora que começar a existir fiscalização, aí vai ser de levantar os cabelos.
A senhora acredita que o desvio de recursos no caso dos sanguessugas é a ponta de um iceberg?
O escândalo da máfia das ambulâncias é de pequeno porte em relação ao que alguns relatórios da CGU já apontaram, como irregularidades nos repasses da União para os fundos estaduais e municipais. No caso dos sanguessugas, é ambulância que não existe ou foi superfaturada. Nos repasses da União para os fundos estaduais e municipais, é o medicamento de alto custo que nunca chegou à população do local destinado e isso está sugando todos os recursos dos programas de saúde para o ralo, inclusive os do projeto Farmácia Básica.
Como ocorrem as fraudes nos repasses diretos da União para estados e municípios?
Quando houve a descentralização dos repasses, o que eu achei correto, perdeu-se a capacidade de fiscalizar a aplicação dos recursos na ponta. Os repasses aos entes da federação são constitucionais, mas não há um controle do investimento desse dinheiro na sua finalidade, porque a estrutura de controle interno do Ministério da Saúde está destruída. E também não há controle externo na área de educação.
Qual é então o caminho para acabar com as fraudes?
O primeiro deles é dar maior rigidez aos critérios para apresentação das emendas parlamentares. Depois, é preciso ter controle da aplicação do dinheiro e avaliar se é prioritário determinado município receber uma ambulância, por exemplo.
(Matéria publicada em 04/08/2006; última atualização, 29/08/2006)