Marcelo Mirisola*
Estamos diante de um cachorro enlouquecido que não morde apenas o próprio rabo, mas que investe contra o rabo alheio. E o rabo alheio é o nosso rabo. E a nossa situação é quase a mesma do cachorro maluco, uma vez que também o perseguimos. A diferença é que, apesar da cauda e do latino estridente, – ainda – não estamos de quatro. Ainda não. Escrevo isso a propósito da crise econômica, e posso dizer que faço questão de conservar uma insuspeita distância e um ceticismo olímpico para discorrer livremente sobre o tema, e dar meus palpites. Somente nessa condição é que tenho alguma chance de chegar perto de um alvo distinto do meu próprio rabo. Tanto faz se for o alvo certo ou errado. Entre os meus achaques (por absoluta falta de opção) e o lirismo de um banqueiro, sou mais eu.
Vamos lá.
A força que infla bolhas e valoriza o etéreo é carente do mesmo combustível para se anular e/ou deixar de existir: o nome disso é especulação. Não existe um contraponto inusitado, nem tampouco um tom de piada: essa crise não tem o charme de um paradoxo, e sugere apenas o pavor de uma boiada antes do estouro. Sinceramente, gostaria de poder acreditar que o envelhecimento da notícia seria o bastante para arrefecer a tensão, e assim, a crise deixaria de perseguir o rabo da crise, e nos daria um refresco. Mas a coisa não é tão simples, sobretudo porque não se trata apenas de uma crise econômica. O espetáculo entrou em parafuso.
Nesse caso, o mesmo remédio que mata é o que prolonga a vida do paciente; diferentemente, por exemplo,da Aids. Quem tem mais de trinta anos lembra do pânico que a doença gerou no final dos oitenta e começo dos noventa. A Aids continua matando um monte de gente, mas sumiu das manchetes – e, por isso mesmo (em tese), – estaria sob controle. O que eu quero dizer é o seguinte: no caso da Aids, a muito custo conseguimos afastar o pânico, e mantivemos a informação sob controle.
A pergunta é: até onde conseguiremos conviver com a informação fora de controle, e levar o espetáculo adiante?
Insisto. Hipérboles. Redundância. Pasto, espetáculo. Vácuo, informação. Não dá para fugir das palavras que são a multiplicação e o resultado disso tudo: especulação e espetáculo.
Quem se alimenta do sal do espetáculo é o gado seu vizinho de condomínio. A informação é que está doente, ela é que transmite a aftosa. Muuuuuu. Não podemos esquecer que esse gado sempre existiu e sempre existirá. Todavia, jamais perdeu o caminho do abatedouro. O que sucede é que existe uma tensão no ar, e a boiada pode estourar para qualquer lado. A mim não surpreende. Eu vejo televisão, navego na internet, leio jornais e livros – desisti de entender as mulheres – ouço tiroteios debaixo do chuveiro, pago aluguel e acho que o Vanderlei Luxemburgo nunca mais deveria pisar no Parque Antártica, sou contra o excesso de orégano e adoro pizza de mussarela e, às vezes, tomo uns gorós com os meus amigos. Ou seja, ainda estou vivo. E não sou besta. Somente um asno não perceberia que alguma coisa está errada quando Itaú e Unibanco somam esforços para ficarem ainda mais simpáticos, mais próximos do cliente. Talvez mais líricos… linha de passe/show de ilusionismo. Essa história de banqueiro virar artista sempre me cheirou muito mal. Quando um banco nem parece banco é porque alguma coisa saiu fora do combinado. Há meses que insisto nessa tecla, vocês são testemunhas. Desculpem o trocadilho: Taií, né?
Voltando ao pasto. Jamais o espírito de gado foi tão exuberante como nos dias de hoje, tanto que vicejou até chegar às “matérias do espírito”, digamos assim. Uhuuu, galera!!!
O gado foi marcado de qualquer jeito. O nomearam. Antes de se chamar “crise” teve vários disfarces (e desdobramentos acima de qualquer suspeita): Henry Ford, Andy Warhol (esse assumidamente original e cara-de-pau), Marilyn Monroe, Bikernau, Wall Street, Pelé, Beatles, capitalismo, humano-desumano, besta-fera, socialismo, esperança (ou a pedra fundamental do cretino, segundo meu amigo Nilo Oliveira), oxigênio, câncer, religião, Bin Laden etc etc. A lista é imensa e todo século vinte e o começo do século vinte e um, desde Freud até o Costinha, passando pelo Che Guevara do Waltinho Salles, se ajustariam nos escaninhos malditos dela, da crise agora nomeada.
George Orwell sugeriu 1984. Chegou muito perto. Vejam só. Há questão de vinte e cinco anos cada mentira correspondia a um reino que não era nada encantando, mas que, de certa forma, conservava seus soldadinhos de chumbo, seus muros, heráldica, barões e choldra, suas fronteiras intactas e inimigos assinalados. A crise (ou a bolha) convivia com todas as maldições e com todas as benções e, aparentemente, tanto as primeiras como as últimas estavam sob controle. Tinham até os calendários da Pirelli & As quatro estações do ano para se manifestar. Era um tempo em que se podia rechear de vinagrete um pastel de carne na feira sem que ninguém enchesse o saco. Acabou.
E já que acabou, permitam-me o achaque…
Aqui vai. Tô tendo um achaque nesse momento. Eis que aparece Bill Gates e processa Pandora, e toda a inhaca retorna para o ventre maldito de onde nunca devia ter saído e é re-processada à guisa … do espetáculo. Voilà! O que poderia acontecer? Merda! Deu merda, meus caros. Pandora foi humanizada e pulverizada e agora é pra valer, a coisa está feia.
Não se enganem: a crise econômica é apenas o prenúncio do malogro, o reino do virtual deixou de ser o reino da mentira para prestar contas à verdade. Lembram dela? Aquela mesma, a maldita verdade que foi usurpada ao longo de todos esses anos e que, agora, nos confronta e cobra sua parte. Preparem-se.
Vai doer, e vai custar caro.
PS 1. Achei esquisito a tirinha do Angeli “The little black skrots” vir sem o título na edição de hoje da Folha, 24,11. Será que houve algum tipo de pressão? Para quem não sabe, de little black… é a versão rapper dos escrotinhos. Genial. E, para quem não sabe, os rappers não têm nenhum pingo de senso de humor e têm um poder de “convencimento” que ultrapassa os limites da babação de ovo das redações. Já passei por isso. Se for o caso, toda minha solidariedade ao Angeli. E se não for o caso, meus cumprimentos pela coragem de publicar as tirinhas nesses tempos bicudos e politicamente corretos.
PS2: Polêmico e iconoclasta, o escritor Marcelo Mirisola fala em entrevista sobre seu romance Animais em extinção. Entre São Paulo e João Pessoa, um narrador debochado resgata lembranças de amigos, amantes, desilusões amorosas e aventuras sexuais. Tem como audiência e musa inspiradora uma ninfeta prostituta. É como se Charles Buwowski reencarnasse na Praça Roosevelt e escrevesse uma nova crônica do amor louco: não é para todos os gostos, mas, como sugere o próprio Mirisola, o escritor precisa correr riscos.
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*Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.