Os protestos dos jovens por todo o país são legítimos, mas contêm certo grau de radicalismo e de exagero de ambas as partes envolvidas: manifestantes e polícia. Quem vai às ruas expor suas insatisfações precisa entender que o seu direito termina quando começa o da sociedade. Infelizmente, no entanto, algumas dessas pessoas têm depredado patrimônio público e privado e cerceado o direito de ir e vir dos cidadãos. Perdem, com isso, a legitimidade. Pior: justificam o uso da força pela autoridade policial, para garantir o direito da sociedade e preservar patrimônios público e privado. Reivindiquemos pacificamente e em locais autorizados. SIMPLES ASSIM!!!
Faço esta reflexão num momento em que temos motivos para comemorar uma vitória. Vitória que, embora não seja um dos temas centrais dos protestos que vêm levando milhares de pessoas às ruas, certamente está no contexto dos últimos acontecimentos. Refiro-me ao andamento de projeto que trata da forma de investidura em cargos e empregos públicos no âmbito dos órgãos e entidades federais.
Apresentado pelo ex-senador Marconi Perillo, hoje governador de Goiás, e relatado pelo senador Rodrigo Rollemberg (PSB-DF), que elaborou um extraordinário substitutivo e lhe conferiu constitucionalidade, o projeto, de nossa autoria, é iniciativa do Movimento pela Moralização dos Concursos, que tenho a honra de coordenar. Já comentei em outros artigos o conteúdo da proposta, inspirada pela nossa experiência de mais de 24 anos na preparação de candidatos para concursos públicos. O objetivo dela, punir severamente quem tentar fraudar concursos públicos, coincide, em última instância, com o do clamor que vem das ruas – clamor esse que chegou de forma inusitada ao Itamaraty e ao Congresso Nacional, com a ocupação da parte superior dos prédios por milhares de manifestantes –: combater a corrupção.
Oportunamente, voltarei a tratar do PLS 74/10. No momento, quero abordar as manifestações populares que há mais de uma semana convulsionam o país. Elas tiveram como momentos mais marcantes o episódio do Congresso Nacional, as gigantescas passeatas que mobilizaram milhares de pessoas no Rio, em São Paulo e em outras capitais e a vaia à presidenta Dilma Rousseff no novo Estádio Nacional Mané Garrincha, em Brasília, antes do jogo inaugural da Copa das Confederações, entre Brasil e Japão. O protesto na forma de vaias, em particular, é emblemático, pois foi a prova de que o descontentamento popular atingiu o centro de poder do país, que parecia imune a qualquer problema, segundo pesquisas de opinião sobre o desempenho do governo e da presidente.
É impossível não traçar um paralelo desses episódios com os que tomaram conta do Brasil há mais de 20 anos. Estou falando do movimento dos caras-pintadas. O levante do início da década de 1990 também começou com pequenas manifestações de rua e, assim como o que assistimos nos últimos dias, acabou se tornando um turbilhão de protestos incontroláveis por todo o Brasil. A insatisfação popular, em 1992, só foi contida quando o Congresso Nacional resolveu ouvir a mensagem das ruas e agir, o que resultou no impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello.
De fato, há muitas semelhanças entre os movimentos de hoje e os de ontem. Tanto no fim do século XX como no início do XXI, moveu e move multidões a insatisfação com a tolerância e a prática da corrupção na política, em vários escalões do poder público. Agora, mais uma vez, o cidadão brasileiro vai às ruas demonstrar a revolta com os desmandos políticos, a envolver, em todos os níveis de administração, os três Poderes da República: Executivo, Legislativo e Judiciário.
Na época dos caras-pintadas, o levante foi motivado pelas denúncias contra o então presidente da República. Acusado de usar ilegalmente sobras de campanha e de ter recebido um carro de “presente”, Collor acabou perdendo o mandato numa sessão histórica do Congresso Nacional. Hoje, o copo da insatisfação popular transbordou nas ruas diante de fatos talvez muito mais graves. O mais notório deles é o chamado mensalão, como ficou conhecido o suborno de parlamentares durante a administração de Lula, em troca da aprovação de projetos de interesse do governo. Um dos projetos “beneficiados” pela prática resultou na mudança do regime previdenciário dos servidores públicos, que perderam a aposentadoria integral e agora têm de contribuir para um Fundo de Previdência, o Funpresp, se quiserem garantir, na inatividade, renda idêntica aos vencimentos da ativa.
A despeito de tantas semelhanças, também há diferenças entre os dois movimentos. Por exemplo, os jovens de 2013 que diariamente estão indo às ruas protestar o fazem sem necessariamente pintar a cara. Além disso, no começo, as marchas deste ano reclamavam apenas dos aumentos das passagens de ônibus. Aos poucos, no entanto, começaram a incorporar outras reclamações. De repente, sentiram que o momento era oportuno para reclamar dos abusos praticados pelo governo federal para promover a Copa do Mundo de 2014, já que estávamos iniciando a Copa das Confederações. O evento, que se realiza em seis capitais brasileiras – Brasília, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife e Fortaleza – constitui teste para a Copa do ano que vem e põe o Brasil em evidência na imprensa internacional. Logo o protesto ganhou dimensões extraordinárias, com a mobilização de milhares de pessoas pelas redes sociais da internet.
Então o movimento passou a enfrentar reações violentas, absurdas e despropositadas por parte do governo federal e dos governos estaduais. Sim, porque quem bota a polícia na rua para atirar balas de borracha, lançar bombas de gás lacrimogêneo e usar spray de pimenta; quem autoriza que as forças de segurança ataquem manifestantes com a cavalaria e espanquem qualquer um que encontrarem pela frente a pontapés e cacetadas são os governadores dos estados. Tudo para cumprir a determinação do governo federal de realizar os jogos da Copa das Confederações a qualquer preço, como afirmou, numa das mais infelizes declarações sobre os últimos acontecimentos, o ministro do Esporte, Aldo Rebelo. Esses abusos tornaram-se o combustível que gerou mais violência e transformou os protestos inicialmente pacíficos em ações criminosas, com a infiltração de extremistas e vândalos que depredam e queimam bens públicos ou particulares, como temos visto no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Brasília.
É essa postura autoritária dos governantes que estimula as ações mais violentas da Polícia Militar e seus batalhões de Choque contra as manifestações populares. O policial é um cidadão comum, pacífico, quando à paisana. Mas, ao envergar o uniforme e o escudo de gladiador do século XXI, torna-se uma fera incontrolável. Como se diz na gíria, transforma-se numa “pipa voada”. Se recebe ordens para investir contra quem protesta à sua frente, ele passa a ver no manifestante um inimigo, que, como tal, só pode ser destruído. É matar ou morrer. Age, então, como um robô contra qualquer um que estiver à sua frente. Usa de todos os recursos que tem à mão contra pessoas desarmadas e, em geral, pacíficas. Mas, no fundo, apenas cumpre ordens, afinal nenhum policial vai para a rua reprimir uma manifestação sem o comando da cadeia de autoridades que começa no governador do estado.
Quanta diferença em relação ao que assistimos 21 anos atrás com os protestos dos caras-pintadas! E que diferença de comportamento dos políticos que, naquela época, consideravam as manifestações a mais legítima expressão de opinião garantida pela Constituição de 1988! Só me ocorre uma explicação para tamanha mudança de comportamento por parte das autoridades, e ela vem do passado distante, mas se aplica perfeitamente ao momento atual: “Todo poder corrompe: o poder absoluto corrompe absolutamente.”
A frase é de John Emerich Edward Dalberg, Lord Acton, historiador liberal inglês do século XIX, em carta ao Bispo M. Creighton escrita em 1887. Se vivesse hoje, ele diria o mesmo a respeito dos governantes brasileiros por trás dos absurdos custos dos estádios superfaturados da Copa do Mundo, enquanto escolas e hospitais públicos estão em frangalhos, tal como os jovens denunciam. Protestaria também contra a impunidade dos mensaleiros, condenados pelo Supremo Tribunal Federal, mas livres da cadeia até agora, graças aos intermináveis recursos de defesa.
O nobre inglês protestaria, ainda, contra o enriquecimento ilícito de autoridades (ou ex-autoridades) e de parlamentares (ou ex-parlamentares), igualmente sem punição. Assim como se posicionaria contra a Lei Geral da Copa. O instrumento entrega à Fifa o poder de mandar e desmandar em 12 capitais do país para realizar a Copa do Mundo e a Copa das Confederações. Graças a ele, a Fifa pode cercear direitos dos brasileiros e goza de benesses inconstitucionais e inimagináveis, jamais concedidas por um governo a qualquer outra entidade privada ou pública no Brasil.
A indignação de Lord Acton aumentaria em face das denúncias de corrupção dirigidas contra o antigo presidente e ex-presidente de honra da Fifa, João Havelange, e seu genro e ex-presidente da CBF, Ricardo Teixeira. Os dois são acusados de receber milhões de dólares de propina de uma multinacional e foram forçados a renunciar ao cargo na Fifa para não serem processados pela justiça suíça. Isso sem contar as suspeitas de pagamento de propinas de todo tipo para a realização das obras superfaturadas dos 12 estádios da Copa, o que inflou os custos finais várias vezes.
Lord Acton se revoltaria também diante das fortunas escondidas nas cuecas e nas meias de personagens da política brasileira e não se deixaria enganar pelas vitórias da seleção canarinho, ao contrário do que proclama Pelé, o nosso eterno Rei do Futebol. Certamente também discordaria de Ronaldo Fenômeno, para quem “Copa do Mundo não se faz com hospitais!”
Felizmente, há algumas lições a tirar desse movimento que varre o Brasil de ponta a ponta neste mês de junho. Os jovens têm ensinado muito com seus protestos pacíficos nas nossas ruas. Aprendemos bastante, por exemplo, com aquele rapaz que se colocou diante de uma câmera de televisão, sem medo de mostrar a cara limpa, e avisou: “Fique sabendo, colarinho branco, que nunca mais vamos deixar você sossegado”.
Não adianta bala de borracha, não adianta gás lacrimogêneo, não adianta spray de pimenta, não adiantam cachorros, cavalos, motos ou cassetetes. Interessante é que, quando o movimento cresceu e veio a violenta repressão, desencadeada primeiro pelo governo paulista, a revolta foi geral. Até a presidente Dilma foi à televisão discursar e dizer que concordava com tudo o que estava sendo reivindicado, desde que pacificamente. Logo os mesmos governos estaduais que mandaram a polícia baixar o pau pegaram carona e também começaram a “concordar” com as principais reivindicações. Depois, houve alguns recuos pra valer, com a liberação das passeatas e a proibição do uso de balas de borracha pela PM paulista. Para coroar o sucesso do movimento, assistimos ao cancelamento do aumento das passagens dos ônibus no Rio e em São Paulo.
Essas foram as primeiras vitórias da mobilização popular que acompanhamos em todo o país. Se as coisas não mudarem, daqui até 2014 tudo pode acontecer. Como sugere a propaganda oficial, Imagina na Copa! Assim como os jovens manifestantes, eu, na qualidade de cidadão, educador e empreendedor, também quero hospitais, escolas, transportes e segurança PADRÃO FIFA.
Como disse alguém no meio de um protesto, “o povo acordou o gigante adormecido”. Agora, tudo indica que os jovens não vão parar, e eles têm razão. Querem mudanças, e não se deixarão enganar pelos políticos que com certeza tentarão se apropriar das bandeiras do movimento para limpar a barra com a população. É que o problema tem uma explicação, resumida em poucas mas inspiradas palavras proferidas por um homem que deu sua vida na defesa dos ideais democráticos, Abraham Lincoln:
“Pode-se enganar a todos por algum tempo; Pode-se enganar alguns por todo o tempo; Mas não se pode enganar a todos todo o tempo…”