Cláudio Versiani, de Nova York*
São faxineiros e trabalhadores do campo, porteiros e entregadores de comida. São garçons ou seus ajudantes. Trabalham em lavanderias e tomam conta dos filhos da classe média. São ambulantes, peões da construção civil, gente que ajuda a mover a maior economia do planeta. São os 12 milhões de imigrantes ilegais que vivem na América. O país finge que eles não existem. As autoridades fazem corpo mole e vão levando a situação. Afinal de contas, os imigrantes fazem os trabalhos que os norte-americanos não se dispõem a fazer.
Em dezembro de 2005, o Partido Republicano patrocinou um projeto de lei que transformava os imigrantes ilegais e quem lhes desse ajuda em criminosos. Em ano de eleição no Congresso, os republicanos estão perdidos e não sabem o que fazer para manter a maioria no Senado e na Câmara. Essa foi mais uma tentativa de agradar ao eleitorado de direita.
Entretanto, o tiro saiu pela culatra. O projeto de lei já não tem pai, e a grande discussão agora é o que fazer com os imigrantes ilegais. Mas a questão da criminalidade é pagina virada. Os congressistas republicanos não querem mais saber de perder os votos dos imigrantes. O prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, se colocou contra a lei e perguntou: "O que vamos fazer, deportar 12 milhões de pessoas?". Não obteve resposta.
A reação dos imigrantes só veio em abril de 2006, mas foi tão forte e inesperada que surpreendeu até os próprios organizadores. Foram duas grandes ondas de protestos (veja fotos). Mais de 2 milhões de pessoas – a maioria ilegal ou sem-documentos, como eles preferem ser chamados – marcharam pelas ruas das grandes cidades do país. Em Los Angeles, foram 500 mil; em Dallas, 300 mil, e em Nova York, 100 mil. Das ruas, foram para as capas dos jornais e para as telas dos aparelhos de televisão. A onda de protesto se espalhou por 140 cidades dos Estados Unidos e alcançou uma magnitude histórica. Foram 2 milhões de invisíveis nas ruas da América. O movimento está sendo comparado à luta pelos direitos civis dos anos 60.
Na primeira leva dos protestos, os sem-documentos levantaram as bandeiras de seus países, e a mexicana ganhou disparado. Foi uma chuva de críticas na imprensa. O país se sentiu insultado, reclamaram os mais exaltados.
Na segunda onda, os sem-documentos seguraram a bandeira dos EUA. Com isso, melhorou muito a imagem do movimento. Os democratas estão presentes, mesmo porque essa é uma causa do partido. O senador Edward Kennedy é um dos "protetores" dos imigrantes ilegais. Na manifestação de Nova York, a senadora Hillary Clinton discursou: "Vocês são a cara de quem nos oferece um dia de trabalho justo e nem sempre recebem um pagamento justo por isso". A multidão adorou.
Outro senador, o também democrata Charles Schumer, emendou: "A América é diferente dos outros países porque aqui os imigrantes viram americanos em uma geração". Também marcou pontos com a galera. Só em Nova York são 3 milhões de imigrantes, 80% deles em situação regular. Nos EUA, eles são 14% da população. Como Nova York é o planeta concentrado, havia representantes do mundo todo. Vários grupos religiosos também aderiram ao movimento. Os muçulmanos, muito visados, principalmente depois de 11 de setembro, não deram as caras.
Os candidatos republicanos estão mantendo distância do presidente Bush, que, a cada nova pesquisa, consegue cair mais um pouquinho. A figura de Bush, em vez de ajudar, atrapalha as campanhas eleitorais. A mala está cada vez mais pesada, já não tem alça e muito menos rodinhas. Se houvesse uma nova eleição hoje, Bush teria 39% e John Kerry (candidato derrotado em 2005), 49% dos votos. O que não falta por aqui é eleitor arrependido. Mas, agora, é um pouco tarde e o Irã está logo ali na esquina. Esse novo medo é a velha nova mercadoria que Bush tenta vender aos norte-americanos.
Um dos lemas da manifestação era exatamente este: "Hoje nós marchamos, amanhã nós votamos". Além da força eleitoral, os imigrantes ainda têm como moeda de barganha a questão econômica: eles contribuem com pelo menos US$ 7 bilhões para a previdência social, todo ano.
Do lado de cá da cerca, os patriotas, como eles se definem, ou xenófobos, como são definidos por terceiros, reclamam que os imigrantes custam muito dinheiro ao Estado. Escola, assistência médica etc. As fronteiras com o México são praticamente abertas, passa quem quer. E, mesmo se for pego do lado de cá, ainda existe a chance de ficar por aqui. Basta abandonar o passaporte e não comparecer à audiência judicial. Ou seja, é só se mandar para qualquer outro estado.
Trabalho não falta. Nem sempre a remuneração é justa, mas para quem está fugindo de uma vida sem perspectiva no México, na China ou no Brasil, a possibilidade de se ganhar 10 ou 12 dólares por hora – às vezes, até mais – é o verdadeiro sonho americano.
Os imigrantes não querem mais ser invisíveis, resolveram botar a cara na rua e reclamar. Querem ser tratados com dignidade e respeito. Querem receber um pagamento justo. São trabalhadores e não criminosos, muito menos terroristas. O lema deles é "liberdade, igualdade e dignidade". Vários trabalhadores foram demitidos por faltar ao trabalho no dia das manifestações. Alguns foram readmitidos. Liberdade, nem tanto. Igualdade, nem pensar. Dignidade, deixa pra depois.
Muitos dos "indocumentados" têm filhos americanos, o que gera uma situação no mínimo estranha. Ou, como disse um mexicano ao jornal Washington Post, como explicar a um garoto que está lutando no Iraque, defendendo o seu país, que os pais e avós dele serão deportados?
Este país nasceu tendo como um dos seus princípios a tolerância. De fato, vivemos tempos intolerantes, reflexo de um governo e de um governante que não sabem o significado dessa palavra. Mas, ainda assim, não se pode comparar com a Europa, onde as tensões raciais levam à violência, ou com a Rússia, por exemplo, palco de 25 assassinatos por questões raciais no ano de 2005, segundo matéria do jornal espanhol La Vanguardia.
No Dia Internacional do Trabalho, 1º de maio, os sem-documentos prometem um boicote, um dia sem imigrantes. A proposta está dividindo o movimento. Os patrões ameaçam com demissões. Mas, como dizem os próprios imigrantes, a luta continua.