Celso Lungaretti *
Quando, na década de 1960, Marcuse comunicou o advento do homem unidimensional, deu-nos a impressão de estar apenas exagerando certas tendências dos países desenvolvidos. Seu esboço impiedoso de um indivíduo em que foi anulada a capacidade crítica e cujas aparentemente livre escolhas são moldadas por forças exteriores parecia-nos apenas outra distopia, na linha do 1984 de George Orwell.
Aí, a partir de 1970, passamos a conviver com aqueles pré-yuppies ensandecidos, a vociferarem “Brasil, ame-o ou deixe-o!”, impermeáveis a qualquer crítica que se fizesse à ditadura militar. Só viam o que queriam ver: a conta bancária no azul, os ganhos na Bovespa, o carango na garagem. Direitos humanos? Ora, isso não enche a barriga de ninguém…
Nós nos consolávamos com o pensamento de que a censura férrea vedava aos cidadãos o conhecimento das mazelas do regime dos generais. Não queríamos acreditar que os eufóricos com o milagre brasileiro eram nossos primeiros homens unidimensionais, avestruzes que enterram a cabeça na areia quando confrontadas com realidades que desmentem suas ilusões.
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Pior ainda aconteceria quando os vigaristas neopentecostais começaram a ser desmascarados pela imprensa. As provas de estelionato, curandeirismo, lavagem cerebral e outros crimes se multiplicavam, saltavam aos olhos, até formarem um quadro devastador.
Qualquer ser realmente pensante só poderia concluir que a Igreja Universal do Reino de Deus nada mais era (e é) do que uma arapuca para depenar otários. No entanto, o rebanho de fanáticos fechou os ouvidos, cobriu os olhos e tampou a boca, mantendo-se numa redoma mental até o assunto sair do noticiário. Para eles, tudo não passava de maquinações do Capeta.
O inimaginável seria o fenômeno se reproduzir na esquerda. Mesmo nos piores momentos do século passado, como quando do pacto de Stalin com Hitler, os comunistas se mantiveram disciplinados, mas tinham um mundo de dúvidas na cabeça. Calavam sua insatisfação por acreditarem que a salvação da pátria-mãe do socialismo justificava quaisquer sacrifícios.
Hoje, entretanto, o pesadelo se materializou. Passaram a existir pessoas que acreditam sinceramente ser de esquerda, e com igual sinceridade crêem que se pode ser de esquerda defendendo caudilhos, déspotas e criminosos.
Vêem o mundo em preto-e-branco, vituperando tudo que os EUA e seus aliados fazem, ao mesmo tempo que justificam tudo que é feito contra os EUA e seus aliados. Não percebem que, ao lutar por ideais superiores, não podemos usar as mesmas táticas e armas crapulosas de quem quer apenas preservar o status quo.
Ignoram também que, se os revolucionários são sempre contra os estadunidenses, a recíproca não é verdadeira.
O direitista De Gaulle feriu os interesses norte-americanos muito mais do que Chávez. Seria motivo para considerá-lo um companheiro?
E o que dizer de Pol-Pot e Saddam Hussein? Alguém reverenciará seus exemplos?
No entanto, há quem enalteça as Farc e se julgue marxista, evidenciando um espantoso desconhecimento do “reino da liberdade, para além da necessidade” que Marx tinha como objetivo final: quando o indivíduo, liberto dos grilhões da necessidade, desenvolverá plenamente suas potencialidades humanas.
Seqüestrar centenas de pessoas para obter resgates e fazer chantagem é atitude de bandidos, não de revolucionários. Quem se propõe a conduzir a humanidade para um estágio superior de civilização não pode, jamais, sob justificativa nenhuma, incidir em práticas hediondas!
Prevalece, aqui, aquela regrinha básica da dialética hegeliana: fins e meios estão em permanente interação. Então, a sociedade que as Farc querem construir não é mais a que está nos clássicos marxistas, mas sim uma sociedade em que se admite a captura arbitrária de cidadãos e sua manutenção em cativeiro degradante, subumano, enquanto isto for conveniente para seus captores.
Não serão os homens unidimensionais ditos de esquerda que vão reconquistar o respeito da cidadania para nossas causas, tão abalado por acontecimentos recentes. Isto só poderão lograr aqueles que não negarem o óbvio ululante rotulando-o de “propaganda burguesa”, nem atropelarem os fundamentos da vida civilizada para defender bandos armados.
Quem considera dispensável respeitar os direitos humanos, supondo tratarem-se apenas de “moralismo hipócrita” e “pequeno-burguês”, continuará sendo ouvido tão-somente pelos outros fanáticos e ignorado pelos melhores seres humanos, tal como ocorre quando os zumbis da IURD e da Renascer tentam convencer as pessoas equilibradas da santidade do bispo Edir, do apostolo Estevam e da bispa Sônia.
*Celso Lungaretti, 57 anos, é jornalista em São Paulo, com longa atuação em redações e na área de comunicação corporativa, e escritor. Escreveu Náufrago da utopia (Geração Editorial, 2005). Mais dele em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/.
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