O repórter Rodrigo Carneiro me entrevistou para o jornal Valor Econômico, e a partir das respostas desenvolvi esta crônica. E me obriguei a pensar num assunto que até então eu havia evitado. Evitei porque o combustível da minha escrita é a paixão e a liberdade, e o tema em questão – para mim, pelo menos – é desanimador porque está sendo manipulado no sentido de castrar qualquer possibilidade de argumentação contrária. O fato de você discordar o desqualifica de antemão, enfim: haja estômago para escapar do vazio e da esterilidade. Mas, vamos lá.
Trata-se da política de cotas implementada no Brasil.
Se eu não concordo com os ARGUMENTOS daqueles que são favoráveis às cotas para negros em concursos públicos e editais específicos para a “raça negra”, quer dizer que sou racista?
Se eu não tenho prazer sexual com uma pessoa do mesmo sexo, quer dizer que sou homofóbico? Existe uma interdição aqui. Uma desonestidade intelectual, uma cilada nada democrática por trás desse e de outros “debates” atuais que já nascem mortos na origem.
Um exemplo. No dia da consciência negra, Leonardo Sakamoto, um dos colunistas mais lidos do Uol e do país, praticou isso que eu chamo de exercício de intolerância e subtração. O blogueiro elenca várias baixarias racistas e liquida a questão insinuando que qualquer outro argumento contra as cotas não tem qualidade para ser discutido. De antemão e muito toscamente, sugere que aquele que for contra a política de cotas, necessariamente, será um racista.
Às cotas. Um dos argumentos mais usados é o de que os brancos tem uma dívida de mais de 200 anos a acertar com os afrodescendentes. Na reportagem do Valor Econômico, o “rapper” Emicida, aquele que num dia incendeia multidões contra o “sistema” e no outro concorre ao Prêmio de Inclusão Social dado pelo governo do estado de São Paulo (não sei se faturou… mas corria o risco de ganhar uma medalha no valor de R$ 200 mil do “reacionário” Alckmin) aponta raivosamente para os livros de história.
Que “sistema” seria esse ao qual Emicida se refere? De ar condicionado? Sistema de freio? Bem, talvez ele se refira àquilo que o “sistema” de cotas enseja, e não saiba exatamente se a vela que acendeu foi pra Deus ou pro capeta, porque o ódio – dizem – cega. Trata-se da exclusão travestida de inclusão. Vamos ao livros de história. A pergunta que o “rapper” devia fazer a si mesmo, depois de consultá-los, é bem simples: quem são esses brancos que ele tanto abomina?
Não são meus antepassados, garanto que não. Meus bisavós também foram discriminados e humilhados pelos mesmos quatrocentões que escravizaram os ascendentes de Emicida, Carlinhos Brown e Negra Li. Me ocorre uma idéia estapafúrdia. E se eu defendesse cotas e editais para os descentes de italianos que serviram de capacho para os antepassados da ministra Marta Suplicy, ela que é herdeira do ramo nobre dos Vasconcelos – se não me falha a memória, a bisavó da ministra carregava o título nobliárquico de baronesa, sinhazinha dona de escravos; enfim, e se eu levantasse a bandeira de cotas e editais específicos para os oriundi? Olhem só o absurdo: a família da ministra Marta Suplicy, quatrocentona de quatro costados, é que deveria indenizar (através de cotas e ações afirmativas), não só os afrodescentes, mas os descendentes de imigrantes que chegaram no Brasil com uma mão na frente e outra atrás, trabalharam feito animais em condições desumanas, e sofreram por décadas a humilhação de carregarem sotaques estrangeiros. Basta lembrar o episódio da Segunda Guerra Mundial, quando italianos, japoneses e alemães foram perseguidos implacavelmente pela ditadura Vargas. Por quê? Simplesmente porque eram italianos, japoneses e alemães.
Não faz nenhum sentido cobrar cotas de quem também foi vítima de intolerância e racismo, e tem mais: se formos contabilizar os negros e mais os descendentes de europeus que imigraram para o Brasil depois da abolição, chegaremos por baixo a 3/4 de população discriminada ao longo dos últimos 120 anos. Haja cota! Quem ficaria de fora? Os pobres! Sempre eles. Pobres brancos, pobres amarelos e os azuis de fome.
O problema todo é transformar cicatrizes em herança. Puxa daqui, puxa dali, e a úlcera voltará a sangrar, foi isso que eu disse a Rodrigo Carneiro, repórter do Valor Econômico. Ó odio e a revanche que o demagogo rapper Emicida proclama, e que os defensores das cotas festejam, não tem cor. Nem de um lado, e nem do outro. Os carecas do ABC mandam lembranças.
Imagino que deva ser muito cômodo à ministra da consciência negra incorporar uma nova Princesa Isabel às custas de demagogia, sofismas torpes, culpa e canga alheia.
Meu nome é Rizzo Mirisola, também tenho Bonavita, Bellizia e Strifezzi correndo no meu sangue de descendente de imigrantes, e não deveria me sentir constrangido nem envergonhado de ser igual ao Lázaro Ramos e a Thaís Araujo, uma vez que até a implementação das cotas éramos iguais. Querem apostar que o casal bem-sucedido, que jamais precisaria de cotas, será incluído num desses editais que privilegiam atores negros?
Outra coisa. O abominável racismo implícito e não-dito não vai sumir do mapa por causa da política de cotas. Ao contrário. Agora a coisa piorou: depois das cotas e dos editais excludentes, o país – ao contrário do que dizem os defensores do apartheid cultural – será mais racista, duplamente racista, pelo não-dito e pelo dito também.
Hoje, sinto um profundo constrangimento em ser igual ao ministro Joaquim Barbosa (ele mesmo deve sentir constrangimento parecido pelo fato de ser igual a si mesmo) e a Negra Li. Mas eu insisto nisso, em ser igual, apesar de essa condição me transformar – segundo a lógica antidemocrática e desonesta do blogueiro Sakamoto e dos defensores das cotas – num porco racista e abjeto.
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