Fernando Alcântara de Figueiredo*
Causou espanto a notícia de que as Forças Armadas poderão exigir exames de HIV dos alunos da Escola Militar e vetar aqueles que forem soropositivos, impedindo sua carreira e destruindo seus sonhos.
Desde os anos 80, essa discussão é cercada por uma prática dolorosa. O surgimento da doença que dizimava vidas em pouquíssimo tempo assustou o mundo naquela época. Especulações atingiram a opinião pública mundial e causaram grande constrangimento aos vulneráveis. Essa onda de caça às bruxas, certamente, tem suas bases num preconceito existente há séculos onde se expurga da sociedade os considerados “diferentes” – que assim passam a ser estigmatizados. No início, a síndrome chegou a ser chamada de peste gay. Mas a medicina proporcionou grandes avanços e o assunto foi recolocado, pelo menos em parte, no seu lugar. A cultura mudou, e a sociedade começou a enxergar no antigo “diferente” um ser humano que, como todos os outros, poderia estar doente ou não, livrando-o do estereótipo que lhe reduzia a condição humana.
Lamentavelmente, enquanto conceitos são reestruturados e a própria sociedade avança em bases democráticas humanitárias, nossas Forças Armadas mergulham num obscurantismo fundamentalista, que tenta marcar definitivamente os “desiguais”, homossexuais ou heterossexuais, cultivando uma política de constrangimento na fomentação do ódio gratuito. É dever de todos os povos rechaçar este comportamento que representa segregação social. Uma espécie de culto ao sofrimento. Nossa Constituição exige o fim de toda e qualquer forma de discriminação. Mas a lei Magna é contrariada por alguns chefes militares que, pelo jeito, não estão habituados às ordens democráticas.
Não existe ampla liberdade nas Forças Armadas de nosso país. Engana-se quem acredita que isso ocorra somente com os homossexuais. Para exemplificar, podemos afirmar que não há um só general negro no Exército do Brasil. O único que ascendeu foi inexplicavelmente aposentado compulsoriamente, mesmo sendo os afro-descendentes maioria no Brasil. A Marinha até hoje se mostra intransigente em reconhecer João Cândido herói nacional. Ele era negro e sua luta, conhecida como Revolta da Chibata, de 1910, extinguiu o castigo físico nos quartéis. Não há uma única mulher em postos de comando, embora elas se façam presentes em diversas profissões e representem mão de obra tão especializada e eficiente quanto os homens.
Por tais motivos, devemos nos preocupar muito com a frágil relação das Forças Armadas com a democracia. A democracia já foi arranhada com o poder de polícia dado às nossas Forças Armadas, para prender a qualquer dia e qualquer hora da noite quem quer que seja, por qualquer razão, nas fronteiras do país.
Afirmar que a repulsa nas escolas militares de jovens portadores de HIV tem relação com possíveis “traumas decorrentes da atividade que possam provocar sangramento, num cenário de insegurança a terceiros” é uma indisfarçável apologia à discriminação. A UNAIDS já expediu parecer técnico firmando entendimento de que “os infectados com o HIV não possuem restrição alguma a qualquer tipo de atividade profissional”. A relação de causa e efeito argumentada pelo comando militar, portanto, além de infundada é arbitrária. Representa afronta à dignidade humana à medida que os muros dos quartéis se mostram intransponíveis à democracia.
*Sargento licenciado do Exército, escritor, autor do livro Soldados não choram, publicado pela Editora Globo, ativista político em direitos humanos e membro do grupo Tortura Nunca Mais do estado de São Paulo.