Eduardo Fernandez Silva*
Embora propalado como sendo uma porta para a modernidade, o trem-bala Rio–São Paulo-Campinas nos levará a mais atraso e subdesenvolvimento. Embarcar no projeto do trem-bala implicará mais gasto público para construir projeto desconectado das necessidades nacionais, cujos orçamento e prazo de implantação serão muito maiores que a previsão inicial. Mais ainda, trata-se de projeto que não deixará legado de desenvolvimento industrial ou tecnológico, e cujos melhores empregos serão criados no país fornecedor dos equipamentos e financiamentos. Sua breve e reveladora história mostra os caminhos do atraso.
A pré-história do projeto começa com a tentativa de se “vender” ao Brasil um trem-bala que ligaria Brasília a Goiânia. A proposta recebeu da população o apelido depreciativo de “expresso pequi” e, felizmente, acabou abandonada.
A ideia de implantar o trem-bala Rio-São Paulo entrou na agenda política por volta de 2005, baseada na inacreditável promessa de uma empresa italiana, denominada Italplan, que “garantia” que o projeto seria viável sem qualquer aporte de recursos públicos. Daí, argumentava-se: se nós brasileiros “ganharemos” um moderno e rápido meio de transporte sem comprometimento de recursos públicos, por que não permitir que seja implantado?
Já à época da proposta da Italplan qualquer análise mais aprofundada revelaria a fragilidade dos seus argumentos: primeiro, a empresa não possui nenhuma experiência em planejar ferrovias; segundo, não existe, no mundo, trem-bala construído e operado sem o aporte de volumosos recursos públicos. O grupo de trabalho encarregado de analisar o projeto, porém, optou por acreditar na promessa.
Hoje, ninguém duvida de que o uso de recursos dos contribuintes é essencial para a implantação do trem-bala. No entanto, as autoridades parecem não saber que desapareceu o que seria o grande atrativo do projeto: ser realizado sem aporte de recursos públicos!
A estimativa de custo mais recente para implantar o trem-bala é de cerca de US$ 18,2 bilhões. Como se sabe, é da natureza do processo político que, para viabilizar grandes obras públicas, elas sejam orçadas, inicialmente, por muito menos que seu custo real, e que seus supostos benefícios sejam, também no início, inflados ao extremo. Essa estratégia facilita “convencer” aqueles que decidem da “importância” do projeto. A julgar pelo ocorre na maioria dos projetos públicos, certamente que a estimativa inicial será ultrapassada, em muito. De acordo com o jornal O Estado de S. Paulo, mais da metade das obras do PAC tiveram seus custos iniciais aumentados, alguns em até mais de 100%. Por que razão seria diferente com o trem-bala?
Ainda não se sabe quanto desses mais de dezoito bilhões de dólares será de dinheiro dos contribuintes! Digamos que a participação do governo seja de “apenas” 30%, ou cinco e meio bilhões de dólares. Se essa suposta participação do governo federal no custo do trem-bala fosse dividida igualmente, entre as capitais dos 27 estados, cada uma delas receberia mais de duzentos milhões de dólares. Não seria uma aplicação muito mais coerente com a necessidade de desconcentrar o desenvolvimento do Brasil? Não seria muito maior o número de pessoas beneficiadas? Como explicar que, diante de tal concentração de recursos federais em apenas dois estados, os representantes dos demais 25 não se manifestem? Caso Recife, Porto Alegre, Macapá, Belém e outras capitais recebessem, cada uma, duzentos milhões de dólares, a segurança pública, a educação, a mobilidade das pessoas não ficaria muito melhor?
O trem-bala foi inserido no Plano Nacional de Viação – PNV por meio do Projeto de Lei de Conversão nº 5, de 2006, que alterou a Medida Provisória nº 274-A, de 2005. Praticamente, não houve qualquer debate sobre seus custos e benefícios. O projeto ganhou força quando do apagão aéreo: embora existam outras opções mais baratas para se ampliar a capacidade de transporte rápido de passageiros entre as duas capitais, o trem bala foi “vendido” como a solução para a ligação Rio-São Paulo. Alternativa questionável, pois a passagem será mais cara que a de avião: de acordo com os estudos recém divulgados, o preço da passagem, estimado em R$ 200,00, será superior ao preço da ponte aérea! Questionável até mesmo para quem hoje viaja de avião, o trem-bala é de nenhuma valia para quem vai de carro ou ônibus, inútil para quem não viaja entre tais cidades e gravoso para todo o restante do país.
Aliás, o trem-bala de Taiwan, que opera há pouco mais de um ano, está ocioso e já acumulou US$ 1,5 bilhão de prejuízos operacionais – fora o custo da sua implantação! –, pois a população prefere pagar bem menos e viajar nos trens comuns, aceitando uma viagem mais demorada.
Outra ideia difundida e hoje corrente, embora revele um otimismo magnífico, ajuda a apressar decisões pela implantação do projeto: o argumento de que a obra será necessária para o brilho da Copa do Mundo em 2014. Ora, em nenhum lugar do mundo uma linha de trem-bala de mais de 400 km foi construída em menos de dez anos, e faltam apenas cinco para a Copa. Não será o Brasil, com a sua longa tradição de obras públicas inacabadas, cronogramas que se arrastam indefinidamente, carência de recursos públicos, etc., que vencerá tal desafio.
A megalomania do projeto se revela também de outra maneira: estão previstos 98 km de túneis e 107 km de pontes. Trata-se, naturalmente, de algo próximo do paraíso, para as empreiteiras, e do inferno, para a população que não viaja de avião. Comparem-se os 98 km de túneis para o trem-bala com a rede do metrô de São Paulo que hoje, após mais de trinta anos de obras, não tem sequer 70 km de extensão!
Há muitos outros problemas, mas o espaço aqui não é suficiente. Um outro argumento básico contra o projeto é ilustrado com a questão: quando são tantas as carências na educação, na saúde, na segurança e na infra-estrutura de transporte, inclusive entre Rio e São Paulo, para que investir tanto dinheiro público em um projeto que, se funcionar, beneficiará principalmente os pouquíssimos brasileiros que terão dinheiro para pagar as caras passagens? Os empregos que serão gerados com a implantação do trem-bala não poderiam ser criados com outras iniciativas de interesse mais imediato para a população?
Incluído no PAC, muitos técnicos do Poder Executivo federal perceberam a mensagem subliminar: criticar o projeto, que tem prioridade política, pode prejudicar sua carreira ou posição; técnicos das localidades por onde passará o trem de alta velocidade, além de acreditarem que as obras não serão pagas com os recursos municipais, preferem crer que elas trarão muitos empregos e “progresso”… Assim, para quê questionar o projeto? Até lideranças de empreiteiros de obras públicas, desde que o anonimato lhes seja garantido, reconhecem que a proposta é, no mínimo, de questionável interesse público, ou extemporânea.
Não obstante tudo isso, la nave vá…
Finalmente, agora em julho de 2009, o governo divulgou estudo sobre o trem-bala, elaborado por empresa inglesa de consultoria. Incidentalmente, este estudo deveria ter sido concluído e divulgado em outubro de 2008; seu atraso, já superior a oito meses, apenas mantém longa e infeliz tradição brasileira e parece prenunciar o futuro do trem-bala…
Esse estudo da consultoria inglesa, segundo notícias na imprensa, estima que 32 milhões de passageiros usarão o trem-bala anualmente, a partir de 2014, mas destes apenas 7 milhões farão o trajeto RJ-SP; os demais farão pequenos trechos ao longo do trajeto, como São Paulo-São José dos Campos. Não está claro como se estimou tais números. Ainda assim, fica evidente a incoerência do projeto: para que um trem-bala, se a maioria dos passageiros fará pequenos trechos, tão pequenos que, neles, o trem não poderá acelerar até atingir velocidade máxima? Para que comprar uma Ferrari, se não se pode ir além do quarteirão?
A defesa do projeto usa ainda outro argumento débil: a ideia de que haverá transferência de tecnologia. Já se cogita, até, criar uma nova estatal para absorver os conhecimentos! A inconsistência do argumento revela-se porque, se já é tão questionável a viabilidade de implantar o trem-bala entre as duas maiores metrópoles nacionais, certamente as chances de um segundo trem-bala são ainda mais remotas. Nesse quadro, se não há outros trens nos quais utilizar a tecnologia, nem existem trens de passageiro de longa distância no Brasil que pudessem dela se beneficiar, como era o caso da Europa, Japão e China, entre outros, para quê comprá-la? Se é para dar início à implantação de uma malha de transporte ferroviário de passageiros, iniciá-la com o trem bala ou TAV é ideia que se assemelha à proposta de começar pelo telhado a construção de uma casa!
Mais um argumento ingênuo tem sido usado para justificar o projeto: afirma-se, e a imprensa está cheia de exemplos, que tanto o trem-bala é viável que há empresas e bancos estrangeiros interessados no projeto. É verdade; há empresas e bancos interessados no projeto, e com freqüência seus representantes têm visitado autoridades brasileiras. Quem são eles? Empresas vendedoras de trem-bala e bancos interessados em financiar o projeto, desde que com a garantia do Tesouro Nacional! Certamente, o uso de argumentos tão precários sugere que não há motivos mais fortes e publicáveis para se embarcar em tal projeto.
Por fim, uma questão de fundo: quais as características do processo político brasileiro que possibilitam o comprometimento de tão vastos recursos públicos em projeto tão questionável e que atende apenas a interesses tão limitados e particulares?
*Professor de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e de Logística do Instituto de Educação Superior de Brasília (IESB).