Marcelo Mirisola
Um bom livro no Brasil tem um mês para existir. É o prazo de validade. Um filme (ainda que documentário) tem uma vidinha mais longa, coisa de dois Big Brothers. Foi com esse espírito que vi, depois de quase dez anos – portanto prazo de validade vencidíssimo – o Edifício Master, de Eduardo Coutinho.
A cumplicidade com o entrevistado, o ouvido educado para não interferir, aquela piedade ao mesmo tempo próxima e distante e, sobretudo, a paciência – haja! – é coisa de cínico refinado. Se Coutinho morasse num moquifo parecido, duvido que faria o excelente documentário que fez. Talvez apelasse para a ficção.
Ou mais. Se Eduardo Coutinho fosse o Dalai Lama de verdade, suas quitinetes não seriam tão ululantes e contraditórias. Talvez coubessem dentro de 30 metros quadrados. Vazias. Sem inquilinos, televisores e domingões intermináveis. Mas o Tibet não fica na Barata Ribeiro.
Tampouco no Catete, na rua Santo Amaro 606.
Explico. No afã (ih, escrevi “afã”!…) de morar no Rio de Janeiro, aluguei um moquifo no endereço supracitado. O motivo: Claudinha, carioca da Tijuca, 25 anos, morena, linda e rouca ao telefone: “Vem, Marrcelo”. Ela tem uma clave de sol tatuada no ossinho do cóccix. Eu vou fazer 44 anos em maio. Foi ela, Claudinha, arrastando todos os erres – quem me disse: “Marrrrcelo, vem”.
Bem, aqui tenho que fazer um esclarecimento. Marcelo sou eu mesmo, caipirão. Antes de Claudinha, pensava que só existiam erres arrastados nas novelas da Globo. O que eu podia fazer? Subi no primeiro avião com destino à minha felicidade caipira. Aluguei o primeiro moquifo com vista para o Pão de Açúcar. Isso foi anteontem.
Hoje posso dizer que três dias num pardieiro desses é o suficiente para acreditar no documentário de Coutinho, e duvidar do documentário de Coutinho. E foi assim, nesse embate entre ficção e realidade, que liguei para a imobiliária e rescindi o contrato de locação. A despeito do meu amor por Claudinha, tive de pagar uma multa de três aluguéis. O pior de tudo é que não dá nem pra dizer: “dane-se”. O melhor seria dizer: “tarde demais”. Só me restava fazer a cruel contabilidade. A saber. Com essa grana poderia ter me hospedado num hotel em Ipanema e, numa hora dessas, eu e Claudinha estaríamos sorvendo um dry martini… quiçá descansando do sexo defronte o Hotel Marina, aquele mesmo que “acendia” na música da lésbica mais talentosa da MPB,depois de Angela Rô Rô, é claro.
Não foi o que aconteceu. Queria o Pão de Açúcar, Claudinha e o Rio de Janeiro em 1958. Mas tudo o que consegui foi vislumbrar um Cristo na ponta dos pés, logo acima e à direita da minha janela de alumínio, cortado pelo morro de Santo Amaro. Olhávamos a cidade – eu e o Cristo – como se fôssemos uma dupla de voyeurs: alheios e caipiras, mais ausentes do que Claudinha jamais imaginaria ou poderia ter sido comigo.
Torrei tudo, e não tenho para onde ir. A contabilidade insiste: mais uma semana para desocupar a quitinete. Bem, tinha que avisar Claudinha. Quando liguei, e lhe relatei o acontecido, ela arrastou todos os “erres” e “esses” e me corrigiu roucamente : “O Rio não é para amadores”.
O Cristo na ponta dos pés, eu e o morro de Santo Amaro: éramos mixaria para Claudinha. Que eu a procurasse em Ipanema. Aqui, além da televisão dos vizinhos ligada 24 horas por dia, do gordo do 809 que cismou de dar uma morrida no corredor, aqui falta gás encanado, além disso tudo, aqui, ainda tenho uma bela vista para o Pão de Açúcar… e vá lá : uma vaga lembrança do século retrasado quando caminhava apreensivo pela rua do Ouvidor, e acreditava ter perdido Capitu para sempre.
Ah, no Rio temos mosquitos da dengue, a filha do Garotinho que é vereadora e corre-se o risco de o Wagner Montes candidatar-se a governador do estado (eu voto nele só pra esculhambar) e mais esse elevador Master que fede a urina. Os corredores desse favelão vertical fedem e fervem a urina. Debaixo de 40 graus à sombra, o documentário de Coutinho é um mictório público. O Pão de Açúcar – lá longe – também, empestado, fede a urina.O que mais?
Claudinha, do outro lado da linha, a me corrigir pela última vez: “O Rio não é para você”.
Nem para o Cristo, pensei.
Faz cinco anos que escrevi essa crônica. Não lembro de tê-la publicado em lugar algum. Tava perdida nos meus arquivos. Se alguém a leu em algum lugar, por gentileza, me avise onde.
Os livros (sobretudo os bons) perderam aquele prazo de 30 dias de validade. Hoje, duram no máximo uma semana. Ridículo ser escritor no Brasil. Eu sou uma besta mesmo, e já que passou meu tempo de ser tenista, insisto: dia 21 de fevereiro, lançarei o Memórias da Sauna Finlandesa nos Parlapatões, começa às 19 horas e vai até o último bebum, lá na Pça Roosevelt, em São Paulo. Outra coisa: fico até constrangido em escrever isso. Mas se você que leu um livro (qualquer livro!) e gostou, se você continuar mudo(a), daqui a pouco um pão amanhecido vai ter mais utilidade do que um escritor. Quem não fala de livros, fala de Big Brother. Agradeço a todos os que leram e gostaram e falaram do Memórias da Sauna Finlandesa.