A hipocrisia (não apenas) da elite brasileira nos coloca diante da senzala moderna, o quartinho de empregada. E quando confrontada com o horror do cubículo escuro e mal ventilado situado na área de limpeza, pleno de arquitetura e cultura da servidão, é possível que ocorram reações de falso espanto ou até estranha culpa. Mas é coisa de segundos, por certo.
Em um piscar de olhos reencontra-se a justificativa de tempo escasso somado à necessidade de outra pessoa obter recursos para o próprio sustento, produzindo discurso uníssono sobre tratamento supostamente afetuoso, respeitabilidade conferida à outra, como se parte da família fosse e em alguns casos -veja só!- a permissão do retorno para casa todos os dias, junto com a frequente doação de peças de roupas e sapatos usados. Ufa! O serviço essencial das trabalhadoras não prioritárias. O que seria delas se não fosse esse trabalho, não é?
A morada da hipocrisia da sociedade brasileira se expressa exatamente nos subterfúgios para negar direitos e ampliar a exploração das trabalhadoras domésticas no Brasil. Claro registro da escravidão inconclusa que permeia as relações de trabalho, ignorar o que mantém o trabalho doméstico tão invisibilizado enquanto trabalho é o mesmo que negar o racismo e o sexismo da sociedade brasileira.
Lélia Gonzalez, filósofa, antropóloga, militante do movimento negro e uma das maiores intérpretes sobre o Brasil, discorre em seu ensaio “Racismo e Sexismo na cultura brasileira” como as noções de mulata, doméstica e mãe preta revelam as práticas e o lugar relegado às mulheres negras em nosso país. Em específico, sobre a noção de doméstica, Lélia diz:
“Ela nada mais é do que a mucama permitida, a da prestação de bens e serviços, ou seja, o burro de carga que carrega a sua família e a dos outros nas costas. Daí ela ser o oposto da exaltação: porque está no cotidiano. E é nesse cotidiano que podemos constatar que somos vistas como domésticas.”
O trabalho doméstico no Brasil é realizado em sua maioria por mulheres (92%), negras (63 %), e apenas 28% das trabalhadoras tinham carteira assinada, em levantamento realizado em 2018 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada- Ipea. Contudo no ano de 2020, com a pandemia do novo coronavírus tudo que já era ruim ficou pior. Mais de 1.5 milhões de postos de trabalho desta categoria foram perdidos, incluindo as trabalhadoras com carteira assinada, as informais e as diaristas, conforme dados do Instituto Doméstica Legal.
E em uma dinâmica clássica no neoliberalismo, com a perda de postos de trabalho avança a já conhecida precarização das condições de trabalho em terrível sintonia com as remunerações cada vez mais baixas. Para as trabalhadoras domésticas o risco de morte na pandemia não se distanciava do risco de não ter condições de sustentar a si e aos seus.
E sob uma curiosa imprescindibilidade para aqueles que puderam exercer o trabalho remoto ao longo da pandemia, essas trabalhadoras não foram incluídas (saliente-se, enquanto categoria) em qualquer lista de prioridade para vacinação, auxílio emergencial ou suporte de seus dependentes.
Não comoveu por muito tempo a morte da trabalhadora doméstica Cleonice Gongalves, 63 anos, no Rio de Janeiro, após contrair coronavírus de seus patrões ao retornarem da Itália. O paradoxo não lugar destinado às trabalhadoras domésticas remuneradas se organiza dentro de um discurso que flerta com a “caridade”, por parte dos empregadores e pelo lado das trabalhadoras, explora-se a necessidade de sustento em um país que se romantiza a pobreza, sob risco de mudanças indigestas. Se todos quiserem mais direitos, como ficarão os mais ricos com tantos menos pobres?
O trabalho não nomeado como trabalho produz esgotamento, ausência de perspectivas e pouca clareza sobre seus contornos. E através desses apagamentos, as violências ganham corpo e destino.
A começar pelo acesso a saúde pública de qualidade, com o sucateamento do SUS, passando pelas condições e custo do transporte de massa e chegando até o aumento do desemprego, a trabalhadora doméstica diante da pandemia teria um sem número de razões para ser reconhecida como grupo prioritário, já que seu trabalho é tratado como essencial, tradicionalmente na cultura brasileira. Mas esse é o luxo que custa barato. Diante da lógica da descartabilidade, para quê proteger aquelas que são vistas como o “quase”, em contínua desumanização e não lugar?
Se por meio da pandemia da covid-19 as vísceras das desigualdades da sociedade brasileira foram expostas, que nesse mês do trabalho e das mães as trabalhadoras que mexem com o lixo dessa sociedade subam no palco da história e lancem na mesa posta o entulho do racismo e do sexismo que as está conduzindo para os limites da dignidade e da exposição ao vírus, mais uma vez, sem amparo às suas vidas. Está na “mesa” o serviço essencial das trabalhadoras não priorizadas, Brasil. Mas que ele seja amargo para todos, como o é para elas.
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