Se o combate à corrupção é, no Brasil, um dos principais pontos da atenção e da cobrança do eleitor, isso se deve muito ao PT. Durante todo o tempo em que o partido esteve na oposição, a denúncia aos atos de corrupção dos governos sempre esteve no cerne do discurso petista. Os deputados e senadores do PT são alguns dos principais protagonistas das investigações que aconteceram contra políticos e governos antes do presidente Lula assumir o poder em 2003.
De modo que toda a grita a respeito do resultado do julgamento do mensalão que tem surgido agora de alguns setores do PT agride os ouvidos de qualquer um que tenha um mínimo de memória. Principalmente, as reclamações que falam de “hipocrisia” na condenação dos atos cometidos pelos que engendraram o mensalão. O argumento de que não é justo condenar os réus do mensalão porque todo mundo faz esquemas semelhantes e nunca foi punido não poderia vir justamente daqueles que foram os protagonistas das principais denúncias de corrupção nos governos passados. É ignorar uma evolução que deve muito, inclusive, ao próprio PT.
Segue, então, um convite a que puxemos pela memória a partir de alguns exemplos. Era ainda o final do governo José Sarney quando o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) começou a se empenhar para tornar público o Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi), que agrega e permite o acompanhamento dos gastos públicos. Suplicy conseguiu, então, que os parlamentares passassem a ter senhas de acesso ao Siafi. O gabinete do senador passou a ser, então, o porto no qual os jornalistas de Brasília ancoravam para investigar as ações dos governos. E foi do gabinete daquele senador do PT que começaram a sair as primeiras denúncias de corrupção contra o governo do então presidente Fernando Collor.
Caso, por exemplo, das reportagens que denunciavam desvios cometidos por Rosane Collor na Legião Brasileira de Assistência (LBA). Depois das denúncias de Pedro Collor, é mais do que conhecido o protagonismo de parlamentares do PT, como José Dirceu e Aloizio Mercadante, nas investigações da CPI do PC, que culminou com o impeachment de Fernando Collor.
Da atuação novamente de Suplicy nas primeiras denúncias contra o esquema dos anões do orçamento, eu mesmo sou uma das principais testemunhas. Foi para mim que os assessores de Suplicy alertaram sobre a forma de atuação do chefe dos anões, o ex-deputado João Alves. Eles chamaram a atenção para a imensa concentração de recursos que João Alves destinara a um município da Bahia, de nome Serra Dourada. A partir das informações, minha colega então em O Globo, Denise Rothenburg, rumou para a cidade baiana e descobriu que o dinheiro deveria se destinar a um conjunto residencial, batizado de Vila João Alves. O dinheiro tinha seguido, mas as casas não estavam construídas. Algumas não tinham teto, outras nem paredes. Denise questionou os vereadores da cidade, que disseram que abririam uma CPI para investigar o caso. Ela foi, então, até o prefeito. Confrontado, o prefeito fez uma coisa inacreditável: sacou da gaveta recibos, nos quais os vereadores prometiam apoio a João Alves em troca de dinheiro que receberam do deputado. Os recibos foram parar na capa de O Globo, e João Alves foi afastado da relatoria da Comissão de Orçamento.
No governo Fernando Henrique, também foram ruidosas as denúncias sobre o esquema de precatórios do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER). A construção de rodovias gera muitas demandas judiciais. Casas e terrenos são desapropriados para a passagem das estradas. O governo fica devendo aos proprietários, que entram numa fila para receber suas indenizações. Uma longa fila: as pessoas levam anos para ver a cor do dinheiro devido. Como atuava o esquema? Em troca de propina, fazia com que alguns furassem a fila para receber o dinheiro antes. As investigações, movidas à época por auditores da Advocacia Geral da União (AGU) chegaram ao gabinete do então deputado Agnelo Queiroz. À época, ele era do PCdoB, mas hoje pertence ao PT, e é governador do Distrito Federal, eleito pelo partido. Foi por conta das denúncias que o DNER foi extinto, dando lugar ao Dnit, e Fernando Henrique criou a Controladoria Geral da União (CGU), que foi consolidada e cresceu após o governo Lula. De novo, sou testemunha de tudo isso, como um dos autores das reportagens sobre a máfia dos precatórios, no Correio Braziliense.
Chega-se, então, ao próprio governo Lula. É inegável que a CGU só começou a ter, de fato, uma função fiscalizadora mesmo a partir de seu governo. Foi também aí que a Polícia Federal – principalmente na era Paulo Lacerda – profissionalizou-se e passou a ter uma ação importante na investigação de casos de corrupção. Quanto ao Ministério Público, vale lembrar que o procurador-geral da República no governo Fernando Henrique, Geraldo Brindeiro, era chamado de “engavetador-geral da República”.
Há alguns dias, em um comício, o ex-presidente Lula esboçou dizer um pouco tudo isso que está acima. Disse que o PT não devia se sentir intimidado pelo julgamento do mensalão porque governo de nenhum outro partido tinha agido mais para combater a corrupção. Ficaria tudo certo para Lula se ele tivesse mantido a coerência nas avaliações que fez sobre o mensalão. Mas ele preferiu ser, como mesmo disse uma vez, uma “metamorfose ambulante”, vagueando nas águas do mensalão conforme sopravam os ventos da sua popularidade. Tivesse Lula seguido na linha do pedido de desculpas que fez à população quando o esquema foi descoberto, tivesse o PT seguido na linha inicialmente proposta por Tarso Genro quando presidia o partido – afastando os responsáveis diretos e admitindo que ali foram cometidos os erros –, hoje não se sentiria tão constrangido com o julgamento.
E poderia lucrar politicamente o PT com os avanços institucionais que o julgamento do mensalão representa. Reivindicando a responsabilidade que teve na conquista desses avanços. Mas o PT preferiu não acreditar na força das mudanças que ajudou a provocar. Preferiu acreditar que o discurso do combate à corrupção poderia ser apenas uma ferramenta para ganhar as eleições. Que nunca teria efeito prático no país da impunidade. E fica agora a criticar a velocidade do motor que ajudou a por em marcha após a redemocratização do país.
No dia em que os ministros do STF discutiam o tamanho da pena dos condenados pelo mensalão, o Ministério Público abria ação contra o ex-senador do DEM Demóstenes Torres. Precisa ser julgado o mensalão do DEM do Distrito Federal, comandado pelo ex-governador José Roberto Arruda. E também o mensalão do PSDB de Minas Gerais, capitaneado pelo hoje deputado Eduardo Azeredo (PSDB-MG).
Em vez de criticar a “hipocrisia” do tribunal por condenar práticas ilegais somente agora porque os outros têm esquemas semelhantes não julgados, não seria melhor cobrar agora o mesmo rigor no julgamento dos demais casos de corrupção? Se todo mundo faz, que todo mundo pague. E não que todo mundo escape.