Sionei Ricardo Leão*
Neste ano de efemérides, em particular a que destaca o desembarque de Dom João VI no Rio de Janeiro, em 7 de março, de 1808, precedida por uma estada em Salvador, em dia 22 de janeiro, daquele ano, do ponto de vista da igualdade racial, deve fazer jus à memória do padre José Maurício Nunes Garcia.
A musicalidade brasileira goza de reputação internacional por conta do ecletismo, do vigor e, sobretudo, pelo equilíbrio e, às vezes, fusion entre o popular e o erudito. Isso tanto é verdade que o premiado e influente escritor peruano Mario Vargas Llosa costuma declarar de público a sua admiração do cancioneiro brasileiro por essa pouca distância entre os gêneros do povo e da elite, no caso da arte musical.
Padre José Maurício é um dos patriarcas desse legado cultural. Grande conhecedor da obra Haydn e de Mozart, ele figurou durante a presença de Dom João VI em terras brasileiras como compositor e regente preferencial da corte. Teve a celebridade ameaçada na vinda de Marcos Portugal, de Lisboa. Razão de o imperador retirar do padre o cargo de regente da Capela Real, em benefício do lusitano recém-chegado.
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Autor de Missa de Santa Cecília e Matinas de Finados, José Maurício antecipou no século 18 essa vocação nacional – a de transitar entre influências européias e temas nacionais. Esse perfil, décadas mais tarde, vem perfazendo-se e se reinventado. Basta nos reportarmos ao legado de Villa-Lobos, no século passado. Fruto do pensamento modernista, ele teve por ícone tanto o alemão Johann Sebastian Bach quanto o húngaro Béla Bartók, em razão de ambos inspirarem-se na cultura popular de seus países. No entanto, compôs um compêndio original e, genuinamente, brasileiro.
Em medida equivalente, o movimento que ficou conhecido como bossa nova teve escopo similar, pois se pautou por fundir influências jazzísticas com o samba do Rio de Janeiro.
O padre teve como genitores um branco e uma negra, daí a alcunha de “mulato”, conforme costuma ser definido na historiografia nacional. A tez foi motivo de racismo, pois na corte do Rio de Janeiro, essa identidade racial lhe rendia análises de gênio musical portador de um “defeito visível”.
Por ora grassa uma estranheza, ao menos de parte dos que discutem relações raciais a pouca menção dada pela imprensa aos 120 anos da Abolição, em lugar do grande interesse pelos 200 anos da chegada da família real.
Contudo, em meio a essa polêmica devem sobressair o exemplo, o talento e a peculiaridade de José Maurício, baluarte entre os patriarcas da nossa cultura. Pitoresco à guisa de fecho desse artigo é evidenciar que o padre, apesar de seus votos sacerdotais, teve cinco filhos. Lamentável, do ponto de vista moral, foi não ter reconhecido quatro deles, mazela que ofusca a sua biografia, mas não a ponto de a ignorarmos.
*Sionei Ricardo Leão é jornalista e professor do Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb). Dirigiu seis documentários, entre eles, o Kamba’Race, que recebeu o Prêmio Palmares de Comunicação (2005) do Ministério da Cultura. Integra a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial do Distrito Federal (Cojira-DF).
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