João Luiz Pereira Marciano¹ e Rejane Maria de Freitas Xavier²
A aritmética da votação
Do ponto de vista puramente aritmético – como se compõe a soma dos votos que elegeu um determinado deputado –, a resposta não pode ser única e direta. Há diversas situações em que um deputado federal é eleito, e em cada uma delas a relação de seu mandato com o partido é diferente.
O deputado pode ter feito, individualmente, votos em quantidade suficiente para alcançar o Quociente Eleitoral, que é o número de votos válidos para a Câmara em sua Unidade da Federação, dividido pelo número de cadeiras daquela Unidade na Câmara. Não precisamos nos debruçar, aqui, sobre o fato bem conhecido de que o coeficiente eleitoral, ao diferir muito de UF para UF, leva à Câmara deputados com votações muito díspares. O que interessa é que há deputados que “não precisaram dos votos do partido” para se eleger. Na atual bancada federal de 513 deputados, 27 (5,3%) se elegeram nessas condições. Esses talvez tenham um bom argumento para afirmar que o mandato é seu, e não do partido.
Uma situação diferente é a daqueles deputados que não alcançaram o coeficiente eleitoral. Para chegar à Câmara, alguns deles dependeram do Quociente Partidário, que é o que define o número inicial de vagas que caberá a cada partido ou coligação que tenham alcançado o quociente eleitoral. Esse quociente é determinado dividindo-se o número de votos válidos dados ao partido ou à coligação pelo quociente eleitoral, desprezando-se a fração. Nesse caso, a votação individual do candidato servirá para definir o seu lugar na lista dos que dependem dos votos depositados diretamente na legenda partidária e da soma dos votos dos candidatos do partido.
Tudo isso, mais uma vez, contabilizado no nível de cada Unidade da Federação. Os mais votados dentre os que não alcançaram o coeficiente eleitoral entram nessas vagas definidas pelo total de votos no partido. Para esse grupo, pareceria mais justo reconhecer que sim, foi graças ao partido que eles conquistaram o mandato. Entre os 513 deputados da atual legislatura, 408 (79,5%) obtiveram o mandato dessa forma, com um total de 40,1% dos votos válidos para deputado federal.
Há em seguida uma terceira situação. São aqueles deputados que se elegem com base em uma conta de ajuste que é feita somando-se as frações que sobraram após a divisão das cadeiras entre todos os partidos. Na prática, isso significa que a conta do número de vagas que cabe a cada partido não costuma ser exata: um partido elege, por exemplo, 3,4 deputados, outro elege 5,2 e assim por diante. Também os partidos que não atingiram o quociente eleitoral e, portanto, não elegeram nenhum deputado, têm os seus votos incluídos nesse bolo da redivisão, embora não recebam nenhuma de suas migalhas. Todas essas “sobras” ou frações, reunidas, compõem mais alguma(s) cadeira(s) inteira(s), cuja divisão é feita entre os partidos.
É a chamada Média, cujo cálculo é meio complicado, mas que basicamente é obtida “dividindo-se o número de votos válidos atribuídos a cada partido pelo número de lugares por ele obtido, mais um, cabendo ao partido que apresentar a maior média um dos lugares a preencher”. O deputado que se elegeu dessa forma deve, portanto, seu mandato tanto ao seu próprio partido quanto ao(s) partido(s) que contribuíram com as frações necessárias para compor a vaga que ele veio a ocupar. Foram eleitos pela média, sem a participação em coligações, 13 integrantes (2,5%) da atual Câmara dos Deputados, com 0,9% dos votos válidos para deputado federal.
Uma situação ainda mais complexa é a dos deputados que se elegeram pela média não por um partido, mas por uma coligação. Pode ocorrer que a cadeira extra conquistada pela coligação seja devida em grande parte à votação recebida pelo partido “A”, dentre todos os que compõem a coligação. Entretanto, a vaga pode ir para um candidato do partido “B” ou “C”, se esse for o que tem a maior votação individual entre os candidatos ainda não eleitos. Neste caso, a quem ele deve seu mandato? A dúvida assalta, nesta legislatura, 65 (12,7%) deputados, que obtiveram 3,9% dos votos válidos para a Câmara.
O mandato é do eleitor
Essa parece ser uma resposta politicamente mais correta à nossa pergunta-título. Foi do eleitor que o deputado ou o partido recebeu o mandato; é natural, portanto, que a vontade do eleitor seja o critério mais importante a ser respeitado quando se trata de decidir o que fazer com essa “carta-branca” assim concedida, com validade de quatro anos. Mas será possível determinar a quem o eleitor conferiu o mandato – se ao candidato ou ao partido?
Há uma parcela do eleitorado que vota diretamente na legenda partidária, sem indicar nenhum candidato. Nas últimas eleições para deputado federal, foram 9.851.056 votos desse tipo (9,7 % dos votos válidos para a Câmara dos Deputados). Esses, claramente, votaram no partido.
Já ao eleitor que vota nominalmente, pode ser atribuída a intenção de conferir o mandato ao candidato. Nas eleições de 2006, 90,3% do total de votos válidos para deputado federal foram nominais. Mas se considerarmos apenas o total de votos nominais em candidatos eleitos, teremos um percentual muito pequeno de eleitores que podem se orgulhar de ter escolhido um deputado: apenas 37,4 % do eleitorado apto a votar. Os demais, se votaram nominalmente em um candidato, tiverem na prática seus votos desviados para outro, não necessariamente do mesmo partido.
Esse “déficit de representação” reforça o dado que já havíamos destacado antes: somente 27 deputados, entre 513, foram eleitos diretamente pelo voto nominal. Sua votação representa apenas 7,9 % dos votos válidos para a Câmara. Os demais deputados se beneficiaram, em maior ou menor proporção, de votos que eram dirigidos a outros candidatos.
Uma triste constatação, portanto, impõe-se: a Câmara dos Deputados é pouco representativa do eleitorado brasileiro. Nacionalmente, somando-se os deputados eleitos, os eleitos pela média e os votos de legenda, estão representados menos de 50% dos aptos a votar. Há casos extremos, como o do Rio de Janeiro, onde apenas aproximadamente 35% dos votos válidos (somados nominais e de legenda) estão representados na Câmara.
A “vontade do eleitor”, num tal sistema, é escassamente respeitada desde a origem, e dificilmente poderá ser invocada como critério para associar ou dissociar o mandato do deputado ao partido pelo qual ele se elegeu.
Impasse: o mandato não tem dono?
Um caminho alternativo para tentar uma resposta seria o de tentar verificar na prática – para além do partido ou do eleitor individual – que fator ou fatores influem decisivamente na eleição de um deputado.
Uma sumária e não exaustiva lista de tais fatores apontaria pelo menos o apoio de:
– uma forte base municipal ou regional (prefeitos, vereadores, deputados estaduais)
– um ou mais segmentos empresariais (setor financeiro,indústria automobilística, farmacêutica, etc)
– um ou mais setores agropecuários (arrozeiros, pecuaristas, canavieiros, etc)
– a tradição familiar (pai, avô, irmãos, marido/esposa já consagrados na política)
– uma ou mais categorias profissionais (professores, militares, médicos, metalúrgicos,etc)
– um ou mais movimentos sociais (ONGs, mulheres, negros, sem-terra, etc)
– um ou mais grupo religiosos/confessionais (Igreja Católica, evangélicos, umbandistas, etc)
– participação na imprensa, clube esportivo, e outras janelas de visibilidade.
Esses apoios ou bases podem também se compor entre si, em diferentes proporções, aumentando as chances do candidato. O Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) e o site Congresso em Foco realizaram diversos levantamentos sobre a composição da atual legislatura, reunidos na publicação O que esperar do novo Congresso, da qual extraímos os dados a seguir, relativos à Câmara dos Deputados:
– 263 deputados são profissionais liberais e trabalhadores de nível superior ? e representam 51% da Casa
– a bancada empresarial desta legislatura é a mais significativa desde a Constituinte: empresários urbanos e rurais são 182 (35,5% do total de deputados federais)
– operários e outros trabalhadores são apenas 18 (4%)
– trabalhadores especializados são 17 (3%);
– apresentadores de rádio e TV, artistas e radialistas são 13 (3%);
– pastores e bispos evangélicos são 7 (1,25%);
– policiais são 6 (1%).
Dos 244 novos deputados desta legislatura, pelo menos 200 já exerceram mandato ou cargo político em algumas das três esferas de governo (federal, estadual ou municipal) ou em algum dos poderes Legislativo e Executivo.
Os efetivamente novos, os chamados “supercalouros” (deputados de primeiro mandato que não exerceram antes qualquer cargo eletivo) estão restritos a três categorias: os comunicadores (apresentadores de TV, radialistas, artistas e cantadores), os bispos e pastores evangélicos e finalmente os parentes de políticos tradicionais.
A bancada dos parentes, reunindo parlamentares reeleitos e novos que tenham parentesco com políticos brasileiros tradicionais, representa 20% dos parlamentares da atual legislatura (Câmara e Senado). Entre os supercalouros esse percentual chega a 34%.
Além desses fatores capazes de turbinar uma eleição – e geralmente associado a eles –, o poder econômico exerce uma influência considerável na definição de quem será ou não vitorioso na disputa pelo mandato. O jornal Correio Braziliense publicou, em dezembro de 2006, minucioso levantamento do financiamento das campanhas políticas pelos 200 maiores doadores. Somente o grupo Gerdau, o segundo maior em doações, ajudou a eleger 27 deputados.
Responsáveis por um terço do custo total das campanhas, os grandes doadores investiram R$ 500 milhões em candidatos de vários partidos e do país inteiro, atendendo, contudo, a “uma característica básica”: “beneficiam políticos poderosos, seja no Congresso, governo federal ou estaduais”. Não por coincidência, como mostra novamente o Correio Braziliense em fevereiro de 2007, deputados que receberam volumosas doações de grandes empresas ocupam postos nas principais Comissões temáticas da Câmara, onde questões do interesse desses grandes doadores são encaminhadas e decididas.
Diante de tais constatações, a pergunta inicial, se o mandato pertence ao deputado, ao partido ou ao eleitor, nos soa simplista e até ingênua. Há uma rede complexa de compromissos, lealdades e ambições que passa ao largo, em grande medida, desses atores do jogo político.
Portanto, seria extremamente simplista reservar a todos os deputados que mudam de partido epítetos como “traidores do mandato popular” ou “oportunistas que renegam seus compromissos partidários”. Os próprios partidos, no nosso presidencialismo de coalizão, realinham seus programas e suas estratégias em função do maior ou menor quinhão de participação que conseguem obter nas vantagens do poder executivo. Nesta legislatura, diga-se de passagem, foi o governo o principal beneficiário da rotatividade partidária, que aumentou a base aliada na Câmara em pelo menos 24 deputados.
A resposta do Supremo à pergunta sobre “a quem pertence o mandato” não será a solução para a questão política da representação popular. Enquanto não for concretizada uma cabal reforma política e eleitoral, que inclua soluções alternativas aos atuais modelos de relação entre o Executivo e o Legislativo e aos mecanismos de financiamento e de distribuição dos mandatos, a representatividade do Congresso e os compromissos programáticos dos partidos continuarão em grande medida pura ficção. Ficção que o eleitor, a seu modo e talvez confusamente percebe, e que o leva muitas vezes seja a se desinteressar pela escolha de um representante, seja a trocar seu voto por alguma vantagem concreta imediata.
¹João Luiz Pereira Marciano é doutor em Ciência da Informação e analista legislativo da Câmara dos Deputados.
² Rejane Maria de Freitas Xavier é jornalista, doutora em Filosofia e analista legislativa da Câmara dos Deputados.
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