Márcia Denser
Um dos grandes pensadores do nosso tempo, o sociólogo francês Pierre Bourdieu, morto em 2002, passou do pensamento à ação, sobretudo na década de 90, engajado na luta contra o neoliberalismo, cuja prática e retórica ele denunciava com as armas afiadíssimas dum pensamento quase milenar, como o francês, isento das ilusões e fascinações pseudo-racionalistas vigentes, sem contar as ambições mascaradas sob o rótulo do “politicamente correto”.
Essa atuação de Bourdieu se traduz numa série de entrevistas, artigos e conferências que o leitor brasileiro pode acompanhar nos volumes de bolso publicados por Jorge Zahar sob o título Contrafogos – táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Até porque mergulhar de cabeça na prosa cerrada desse mestre é um empreendimento um tanto árduo, malgrado suas contribuições fundamentais para o avanço do texto sociológico contemporâneo.
Bourdieu é o profeta da “autonomização dos campos”, campos dos profissionais liberais, sejam juristas, escritores, antropólogos, artistas plásticos ou cineastas, uma das conquistas das sociais-democracias da segunda metade do século XX, que institui o campo profissional como instância máxima de consagração, a saber: um escritor só é importante se for reconhecido por seus pares, idem o cineasta, o antropólogo, o advogado etc.
Naturalmente, essa é uma supersimplificação, claro. Contudo, em nosso pequeno âmbito, sempre é possível prestar homenagem a ele, que foi um dos raros representantes de um pensamento livre, não obstante sistemático, rigoroso. Um pesquisador desinteressado, a serviço da humanidade. Quando se referem a Bourdieu, os críticos anglo-saxões, invejosamente, reportam-se ao seu “aristocratismo”, “às suas preocupações com o social que excluiriam o econômico”. Pois sim.
A seguir, algumas de suas idéias:
– É a estrutura do campo mundial, exercendo uma coação estrutural, que confere aos mecanismos globalizados uma aparência de fatalidade. A política de um Estado particular é largamente determinada pela sua posição na estrutura da distribuição do capital financeiro (que define a estrutura do campo econômico mundial). Mas a teoria econômica não leva em conta, na avaliação dos custos de uma política, o que se chama de custos sociais.
– É preciso que todas as forças sociais críticas insistam na incorporação aos cálculos econômicos dos custos sociais das decisões econômicas: o que custarão a longo prazo em demissões, doenças, suicídios, alcoolismo, drogas, violência familiar? Mesmo que isso possa parecer cínico, é preciso aplicar à economia dominante as suas próprias armas e lembrar que, na lógica do interesse mais amplo, a política econômica não pode ser exclusivamente econômica.
– A essa economia estreita e de visão curta é preciso opor uma economia de felicidade, que levaria em conta todos os lucros, individuais e coletivos, materiais e simbólicos, associados à atividade e à inclusão (como a segurança), e também os custos associados à inatividade e à precariedade (como as drogas etc.). Porque não se pode trapacear com a lei da conservação da violência: toda violência se paga. Por exemplo, a violência estrutural exercida pelos mercados financeiros sob a forma de desemprego, de precarização, tem sua contrapartida em médio e longo prazo, sob forma de violência, drogas, criminalidade.
– Nos Estados Unidos, há um desdobramento do Estado: de um lado, um Estado que mantém as garantias sociais apenas para os privilegiados, suficientemente cacifados para que possam dar garantias; de outro, um Estado repressor, policialesco, para o povo. Na Califórnia, um dos estados norte-americanos mais ricos, desde 1994 o orçamento das prisões é superior ao orçamento de todas as universidades reunidas. Os negros do gueto de Chicago só conhecem do Estado, o policial, o juiz, o carcereiro e o oficial da condicional. Temos aqui uma espécie de realização dos sonhos dos setores dominantes – um Estado reduzido unicamente à sua função policial.
– Flexibilidade, palavra-chave do neoliberalismo, significa trabalho noturno e nos fins-de-semana, coisas inscritas nos sonhos patronais. O neoliberalismo faz voltar, sob as aparências de uma mensagem muito chique e moderna, as idéias mais arcaicas do patronato mais antigo. É próprio das “revoluções conservadoras” de Thatcher, Reagan e outros, apresentar “restaurações” como “revoluções”. Essa “revolução conservadora” de tipo novo tem como bandeira o progresso, a razão, a ciência (economia, no caso) para justificar a restauração e tentar tachar de arcaísmo o pensamento e a ação progressista. Ela constitui como regra ideal a lei do mercado, isto é, a lei do mais forte.
– A ideologia neoliberal se apóia numa espécie de “neodarwinismo social”: são os melhores e mais brilhantes que triunfam. Há os winners (vencedores) e os losers (perdedores). Supõe que a inteligência é concebida como um dom divino, quando se sabe que na realidade ela é distribuída pela sociedade, fazendo com que desigualdades sociais se transformem em desigualdades da inteligência. Aliás, os dominantes sempre tiveram necessidade de uma “teodicéia de seus privilégios”, isto é, de uma justificação teórica para o fato de serem privilegiados.
– A ideologia anglo-saxã, sempre moralizante, distinguia os pobres imorais e os deserving poors – pobres merecedores de caridade. Assim, a essa justificação ética, acrescentou-se uma justificação intelectual. Os pobres não são apenas imorais, alcoólatras, corrompidos; são também estúpidos, pouco inteligentes.
Eis aí bons exemplos do livre-pensar de Bourdieu, artigo raríssimo no atual “mercado de trocas simbólicas”, aliás derradeira expressão também cunhada por ele.
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