Capítulo V: “Comecei aos nove anos vendendo coisas na rua”
Dona Jarina, nossa vizinha dos fundos era lavadeira e tinha seis filhos, do dia para noite lhe restaram os três pequeninos, os demais rumaram para Caiena na Guiana Francesa em busca de trabalho e sustento para si e para os que ficaram para trás. No começo da década de sessenta, era comum isso acontecer, de repente alguém sumia do bairro, virou febre cruzar a fronteira, não importava como – se a pé atravessando a floresta com risco de se perder ou em embarcações precárias costeando o litoral, enfrentando a fúria do Atlântico, passando fome e sede numa aventura de altíssimo risco; ou, ainda, para os que podiam pagar, em barco maiores e mais seguros, de contrabandistas, que levavam café, e na volta traziam uísque, perfumes e armas.
O importante era colocar os pés em território francês para trabalhar no canteiro de obras do que viria a ser o Centro Aeroespacial Europeu instalado na pequena cidade de Kourou, que se transformou no maior polo de lançamento de satélites da atualidade. Alta tecnologia europeia, que para se estabelecer precisou da contribuição decisiva da mão de obra dos migrantes brasileiros, dentre tantos, muitos amapaenses, como os filhos de Dona Jarina.
Um dia ela me chamou para que eu saísse com um tabuleiro na cabeça vendendo cuscuz de milho com leite de coco. Gostei da atividade, que exerci por algumas semanas. Não deu certo, as pessoas preferiam o pão quentinho que os meninos do Seu Atana entregavam de porta em porta na madrugada. Minha primeira experiência como vendedor, não tão bem sucedida, serviu para que perdesse a timidez e me abriu novas oportunidades.
Um tempo depois, quando o dia nem era dia, meu amigo Jesus me tirou da rede e me levou para conhecer o velho Melo, dono da única distribuidora de material impresso da cidade, dizendo que eu era de confiança e que queria ser vendedor. Saí de lá com um pacote de jornais debaixo do braço, a Província do Pará e a Folha do Norte, gritando na rua as manchetes do dia. Dessa vez me dei bem, vendi tudo muito rápido. Este fato repetiu-se nos dias seguintes e o sucesso foi tanto que não demorou para que subisse de posto, além de jornais e revistas, passei a vender, tal qual meu amigo Jesus, bilhetes da loteria cujo o ganho era maior. E por falar em Jesus, a roda do tempo girou, e eu o reencontrei na semana passada, de cabelos grisalhos, como os meus, vendendo loteria, como um dia me ensinou.
Na arte da sobrevivência, a rua me trouxe desembaraço, um grande apetite pelos desafios e alguns riscos – como, por exemplo, envolver-me com maus elementos ou deixar de lado os estudos. Isso só não aconteceu devido à vigilância permanente de minha mãe, e também a uma pitada de sorte na hora certa. Aos dez anos, acostumado a passar o dia perambulando pelas ruas, vendendo o que me caísse nas mãos, fui me distanciando de casa, passei a voltar de madrugada, ou mesmo no dia seguinte, causando grande aflição a meus pais.
Em meio ao conflito familiar, o destino atravessou meu caminho, marcando minha vida, no antes e no depois desse dia. Aconteceu numa quermesse organizada pelo padre para juntar dinheiro e construir a Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, que mais tarde daria nome ao bairro. A festa já havia começado e o leiloeiro da santa, necas! Não apareceu! Padre Ângelo não sabia o que fazer, italiano, mal falava o português, era-lhe impossível gritar o leilão para vender as prendas doadas pelo fiéis. Nessa época eu não tinha religião, não lembro o que eu estava fazendo por ali tão próximo do Padre, com certeza nada que tivesse importância, possivelmente atraído pelo burburinho da festa.
Lá pelas tantas, o padre me Chamou: – Disseram-me que tu és bom vendedor, é verdade? – Algumas coisas sim, seu padre, na rua… – Estou com um problema danado, meu filho, pois não é que o desgraçado do leiloeiro me deixou na mão! E tem tudo isso aqui para vender, apontando na direção das prendas, havia cachos de bananas, galinha assada, um porco vivo, uma lanterna a pilha, um vidro de perfume francês, uma rede de pesca, e tantos outros objetos. – Você dá conta meu filho, você dá conta de gritar o leilão?
Surpreendi o padre, não sobrou nada, vendi até o último cacho de pupunha. Satisfeito comigo, e mais ainda com a arrecadação no final da festa, o padre me perguntou: – você quer ser padre? Ainda que minha mãe fosse crente, evangélica do 7º Dia, meu pai sem religião, e eu não soubesse rezar, na hora não pensei duas vezes: – Sim, seu padre! Eu quero andar de bicicleta. – Não foi isso que lhe perguntei, disse-me o padre.
Desculpei-me. Pobre padre. Não passava em sua cabeça que, para mim, padre e bicicleta, eram copa do mesmo tronco, o côncavo e o convexo em perfeita simbiose. Era tudo que queria, acordar um dia com meu sonho transformado em realidade, ser visto e invejado pelos moleques do bairro, flanando de bicicleta por onde existissem ruas.
Naquela noite, voltei para casa imaginando como minha mãe, evangélica, iria receber meu pedido para ser padre. Ela olhou pra mim com os olhos arregalados, e agora? O que eu vou dizer ao pastor? Pôs-se a resmungar, mas não demorou a se acalmar, silenciou e duvidou: – Verdade? O padre te convidou mesmo? Sim, mãe, ele me perguntou e eu disse que sim, que eu queria ser padre. Ela ficou um tempão pensativa, andou de um lado ao outro, parecia buscar ajuda para melhor decidir, fez-me algumas perguntas mais, mas não demorou a concordar, na segunda-feira, iria procurar o padre para conversar. À noite, demorei a dormir, não me saia da imaginação as mil e umas aventuras que empreenderia de bicicleta, dos lugares que percorreria, do olhar admirado dos mais velhos e, claro, da felicidade dos amigos mais chegados, a quem cederia a magrela para umas voltinhas.
No começo da tarde de segunda, depois de ter contado a meu pai – que mesmo sem nunca ter passado na porta de uma igreja, consentiu, achou que seria importante para o meu futuro -, minha mãe, sem me levar, foi ao encontro do padre. E demorou, quando o sol vinha se pondo senti um friozinho no peito, era ela enfrentando com dificuldade o caminho enlameado que dava para nossa casa. Cabisbaixa, e visivelmente preocupada, entrou em silêncio. Fui ao seu encontro, dei-lhe um abraço ansioso, perguntando quando partiria. Desanimada, mostrou-me uma folha datilografada e com o timbre da diocese de Macapá, na qual se lia uma extensa relação de objetos. – É o enxoval, meu filho, infelizmente nada podemos fazer, o dinheiro mal alcança pra comprar o que comer, que dirá para adquirir o que o padre exigiu para você entrar no seminário, portanto, tire isso da sua cabeça, esqueça! Num canto da casa, derramei-me em lágrimas e soluços, mas de repente me veio uma ideia, fui até minha mãe e lhe pedi o papel para guardar de lembrança.
No dia seguinte, não voltei para casa depois da aula. O Barão do Rio Branco ocupa até hoje um quarteirão inteiro da praça que leva seu nome, a sua esquerda, também ocupando um quarteirão inteiro, fica a residência oficial do governador, e no restante do quadrilátero o casario destinado aos altos funcionários do então Território Federal do Amapá, em cujas portas eu costumava bater para vender jornais e revistas. Nesse dia, comecei pelos Porpino. Como sempre, fui recebido por uma revoada de moças, salvo engano, quatro ou cinco, cada uma mais bonita que a outra, Marisia, uma delas, se não foi misse Amapá, chegou perto. Eram minhas freguesas das revistas Ilusão, Grande Hotel e Capricho. Ao me verem de mãos abanando, entreolharam-se sem entender, mostrei-lhes o papel com o timbre da diocese, e lhes expliquei. Fizeram festa, comemorando porque o menino que lhes vendia revista ia ser padre, prometeram-me os dois primeiros itens da lista: uma dúzia de camisas de manga curta, e uma dúzia de calças curtas, assim chamávamos o que hoje conhecemos como bermuda.
Deixei a casa dos Porpino com a cabeça nas nuvens. Até então eu não sabia que santo existia, caso soubesse diria que aquilo teria sido um milagre. Contente com o resultado da primeira investida, decidi bater numa porta que nunca tinha ousado, a do secretário de segurança. Fui atendido por um homem que me pareceu enorme: – Ei, menino! Que diabo estas fazendo aqui? Tal qual eu fiz com as meninas Porpino, estendi-lhe a folha de papel com o timbre da diocese, expliquei-lhe o que era e ele entrou. Poucos minutos depois, retornou, com a voz alterada, dirigindo-se a mim, berrou: tu estás preso moleque! Essa história de ir pra seminário é conversa fiada, tu roubou esse papel da igreja!
* Este é o quinto de uma série de oito capítulos escritos pelo senador sobre histórias vividas pelo povo da margem esquerda do Rio Amazonas. Clique abaixo para ler os capítulos anteriores:
O Igarapé das Mulheres no tempo da lamparina
O Igarapé das Mulheres no tempo da lamparina II
O Igarapé das Mulheres no tempo da lamparina III
O Igarapé das Mulheres no tempo da lamparina IV