Capítulo VII – Gente do Igarapé: uma história comum com resultado diferente
Os Camarão
Seu Camarão, que a matriarca Dona Nenê chamava de Manduquinha, já vivia por lá quando chegamos, habitava numa casa de madeira de muitos quartos, coberta de palha de buçú. Não lembro da sala, mas da cozinha sim, uma puxada sem paredes, nos fundos, que acabava na beira do igarapé. Nela, num fogão a lenha, fumegava um tacho de cobre espalhando no ar o cheiro bom do camarão cozido com sal, que depois de uma manhã de sol eram recolhidos em paneiros de arumã e pendurados ali mesmo na cozinha, assim conservados para o consumo da prole ou, quando havia excedente, o que era raro, comercializados no bairro.
Seu Manduquinha na maré baixa pescava camarão na praia de lama em frente à cidade, levava com ele um ajudante, esse tipo de pescaria exige duas pessoas, uma de cada lado, segurando firme as varas que sustentam a rede de malha fina, e com água as vezes até o ombro, saem arrastando o que encontram pela frente, até que o peso da lama misturada com detritos vegetais obrigue uma parada para recolher o que de bom caiu na rede, limpá-la, e retornar para mais um lance.
Antes de querer ser padre, queria ser pescador. Insisti tanto com Seu Manduquinha, que ele um dia atendeu meu pedido, mesmo tendo tantos filhos para lhe ajudar, decidiu me levar. A primeira coisa que me ensinou foi escapar das arraias, ordenou-me que seguisse atrás tateando o chão com a vara que sustentava a rede para espantá-las, o que exigia um esforço maior, mas plenamente recompensado pela redução dos riscos de uma dolorida ferroada. Dependendo da maré, a pescaria poderia começar muito cedo, antes do nascer sol e se estender até o final do dia. Nesse ínterim pouco havia para comer, invariavelmente farinha de mandioca, vez ou outra, açúcar mascavo. Mesmo passado dos cinquenta não era fácil acompanhá-lo, caminhava maneiro, em silêncio, ensinava-me mais com gestos do que com palavras, com ele prendi a aguentar firme, ser disciplinado, resistir as dores do corpo, a fome e a fadiga, sem choramingar. Acompanhá-lo era tudo que mais desejava, portanto nem pensar em decepcioná-lo, e perder a pescaria do dia seguinte.
Na primeira vez, lá pelas tantas, quando meu corpo ameaçava desobedecer minha vontade, Seu Manduquinha destampou uma lata que guardava debaixo do banco em que sentava para remar, despejou farinha de mandioca na cuia que usava para secar a canoa, com a mão em concha colheu água do rio e adicionou, mexeu e me ofereceu. Depois de duas ou três colheradas, minhas forças e ânimo ressurgiram, e não mais voltei a fraquejar.
Paguei o preço exigido para conquistar, realizar e manter o que mais queria, e assim inúmeras pescarias se sucederam, lição que aprendi e me serviu para o resto da vida.
Nessas idas e vindas fui me aproximando cada vez mais da família, terminei amigo de todas as horas de Dominguinho, com quem diariamente percorria a avenida Cândido Mendes, vencendo a distância que separava nossas casas do Grupo Escolar Barão do Rio Branco, chutando o que encontrássemos pela frente, bola de papel, lata vazia, bagaço de laranja…
Sem contar os filhos da primeira esposa, pelo menos dois, que pouco conheci, Manduquinha e Nenê fizeram eclodir dez rebentos que saltaram pra dentro da vida e vingaram. A primogênita recebeu o nome de Flor de Lis, a segunda era a Domitila, destaque na natação, campeã brasileira infanto-juvenil em 1953, uma gloria e tanto, título conquistado no Rio Janeiro, então capital da República. Lembro que Vitor, um dos filhos de Atana, também se sagrara campeão na mesma competição. A terceira a chegar, foi Doralice, a primeira a obter formação superior. Depois destas três mulheres, o casal colheu a safra masculina com o nascimento de Manoel, Biló, Chicuta e meu amigo Dominguinho. Em seguida, veio a Maria José; um ano depois, foi a vez de José Maria. E, passados quase vinte anos, o casal fechou o ciclo reprodutivo com Dulcelina, a caçula dos cabelos de milho, na décima posição. Os Camarão, tal qual os Capiberibe, não contribuíram para engordar as estatísticas da mortalidade infantil, não tiveram baixas precoces.
Uns peixinhos dentro d’água! Parece que nasciam sabendo nadar. Compreensível, da cozinha da casa mergulhavam direto nas águas do Igarapé das Mulheres, e ali ficavam horas se divertindo, ou quem sabe, preparando-se para os desafios das piscinas que mais tarde enfrentariam com sucesso comprovado por dezenas de medalhas conquistadas em disputas locais e regionais, culminando com a proeza de Domitila, que orgulhosamente, pendurou no pescoço uma medalha de campeã nacional de natação.
O Igarapé das Mulheres no tempo da lamparina
O Igarapé das Mulheres no tempo da lamparina II
O Igarapé das Mulheres no tempo da lamparina III
O Igarapé das Mulheres no tempo da lamparina IV
O Igarapé das Mulheres no tempo da lamparina V
O Igarapé das Mulheres no tempo da lamparina VI