Diante da sombra que o senador Aécio Neves (PSDB-MG) já começa a fazer como principal referência da oposição, alguém perguntou a uma figura eminente do novo governo, durante o coquetel de comemoração da posse da presidente Dilma Rousseff no Itamaraty, se não estava faltando um mineiro importante na articulação política do governo. A resposta: “E não basta a Dilma”?
A verdade é que o fato de Dilma ter passado os últimos anos da sua experiência administrativa no Rio Grande do Sul, antes de assumir cargos no governo federal, faz com que as pessoas às vezes esqueçam que ela é também mineira, de Belo Horizonte. Um esquecimento que Dilma desde a campanha tem feito o máximo de esforço para que não mais aconteça. E não foi por outra razão que Dilma escolheu Guimarães Rosa para citar em seu discurso. Ocorre, porém, que Dilma não podia ter sido mais feliz ao escolher o trecho que citou da obra-prima de Guimarães Rosa, Grande Sertão, Veredas. Além de linda, a frase tem muito mais a ver com a trajetória de Dilma que o simples fato de ter sido escrita por um conterrâneo.
“O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. Esta é a linda frase de Guimarães Rosa. “O correr da vida embrulha tudo” pode ter dois sentidos. Pode querer dizer que ao longo da vida as coisas se embaralham, se embrulham. Mas pode também querer dizer que o correr da vida empacota tudo, embrulha nesse sentido. Ou seja: ao longo do tempo, a vida vai conferindo um sentido único às coisas, vai empacotando as experiências. Experiências que são imprevisíveis. A vida “esquenta e esfria”. “Aperta” em alguns momentos, para “afrouxar” em outros. Temos nossos momentos de inquietude e de sossego.
Quem, há oito anos, quando Lula tomou posse da Presidência, poderia imaginar Dilma Rousseff como sua sucessora? Ela era, então, uma técnica vinda do governo do Rio Grande do Sul sem maior expressão nacional. E eis que, passado esse tempo, o “correr da vida” a transformou em presidenta da República.
A mulher que assumiu o poder no último sábado, de fato, pode esperar tudo da sua vida, menos lances ordenados e previsíveis. Desde a sua juventude, sua trajetória realmente esquentou e esfriou, apertou e afrouxou, sossegou e desinquietou. De todas as pessoas que passaram pela Presidência da República desde a redemocratização do país, ninguém viveu tantos sobressaltos nem radicalizou tanto a defesa de seus pontos de vista como ela. Na sua juventude, Dilma achou que a solução para o país era revolucionária, e admitiu pegar em armas para defender esse ponto de vista.
Ultimamente, tem sido comum fazer um revisionismo de quem fez essa opção, classificando-a como terrorismo e outras bobagens. A opção de Dilma pela luta armada tem de ser entendida no contexto do seu tempo, de um momento maniqueísta da história, em que gente como Che Guevara era vista como grande herói romântico. Hoje, Dilma e a grande maioria daqueles que ingressaram como ela na luta armada sabem, têm convicção, de que o caminho era errado. O que ninguém pode negar é que a opção, pelo que representava de risco à vida e de desprendimento em nome de uma causa, exigia muito do final da frase de Guimarães Rosa: “Tudo o que ela quer (a vida) da gente é coragem”.
Dilma pagou o alto preço da prisão e da tortura pela opção que fez. A vida talvez não tenha ido a tal ponto de “aperto” na trajetória de nenhum outro presidente. Ainda que hoje se verifique equivocada a opção pelos grupos clandestinos que pregavam a luta armada, ela demonstra uma rara coragem de se lutar pelo que se acredita ser melhor para o país. Poucas outras gerações levaram tão a sério o refrão do Hino: “Ou ficar a Pátria livre ou morrer pelo Brasil”. Se hoje concordamos que a opção revolucionária não significava ficar a “Pátria livre”, cobrar isso daqueles jovens, no contexto daquele tempo, não faz sentido. Por isso, o gesto de Dima de beijar a bandeira brasileira ao passar em revista a tropa dos Dragões da Independência não pareceu gratuito.
Mas, voltando à mesma frase de Guimarães Rosa, “o correr da vida embrulha tudo”. Para o bem e para o mal, Dilma não é mais a garotinha idealista e revolucionária de 40 anos atrás. O pacote embrulhado pela vida faz com que ela saiba que chegou ao poder pela via democrática, para promover mudanças, mas sem fazer revoluções. Por outro lado, embalou-a junto com a turma do PMDB, do PP, etc. O beijo na bandeira somou-se na posse ao beijo em Erenice Guerra. Vamos ver ter que esperar um pouco para saber quais foram os ingredientes que sobressaíram na forma como a vida empacotou a atual Dilma Rousseff. Para saber, enfim, em que “embrulho” nos metemos.