Quero juntar minha voz à de todos os leitores e amigos que saúdam a maravilhosa equipe jornalística e administrativa do Congresso em Foco por esse magnífico trabalho de cobertura da crise ética que deixou o Congresso literalmente no chão perante a opinião pública brasileira. Encaro o Congresso em Foco como um projeto, mais que jornalístico, pedagógico e civilizatório, que tive a honra de ver nascer e que agora ninguém que acompanhe, estude e viva o dia-a-dia do Poder Legislativo pode dispensar como ferramenta de trabalho e reflexão.
Poder colegiado, poder aberto, poder desarmado, poder, no caso brasileiro, sem controle sobre as grandes decisões financeiras do Estado (orçamento autorizativo, e não imperativo: o Executivo gasta ou deixa de gastar como lhe apraz), o Legislativo só pode cumprir o papel que lhe cabe no sistema institucional de um Estado democrático e de uma sociedade liberal moderna — aquela pautada por liberdade com responsabilidade pessoal – quando é capaz de assegurar um mínimo de coerência entre o que os seus membros dizem e o que eles fazem. Dessa coerência, depende a legitimidade, cuja erosão, pelo descrédito generalizado, retardou ou destruiu tantos experimentos democráticos, da República de Weimar à Venezuela de Chávez.
É verdade que nesta era de comunicação instântanea e acesso amplo a inúmeras fontes de informação, nenhum povo, mundo afora, está satisfeito com a classe política que elegeu, sobretudo com aqueles espécimes que habitam a vitrine do Legislativo (os do Executivo e do Judiciário têm melhores chances de se esconder nos matagais da burocracia, onde reina o segredo, protegido pela hierarquia, como ensina Max Weber). A percepção é de um fosso cada vez mais largo entre representantes e representados em termos de renda, estilos de vida e horizontes de oportunidades. Mas, mesmo assim: 1) na maioria dos países que conseguiram organizar a representação, a cidadania está sempre atenta a esses desníveis e cobra dos representantes o cumprimento do seu dever de servir à sociedade negando-lhe, ao mesmo tempo, o mínimo direito de servir-se dela; 2) no Brasil, onde a cooptação subjuga a representação, não se pode falar de desnível, mas sim de um horrendo abismo entre as carências de imensa parcela da população, de um lado, e aqueles que exercem cargos públicos como se estes significassem uma licença para roubar e não trabalhar. Agora, muita atenção: essa gente não vem da Lua nem de Saturno e só faz o que faz com o beneplácito do voto de todos nós. Pior ainda, não há grande chance de desentortar a representação enquanto as pesquisas continuarem apontando a ampla base de apoio tácito, conivente, de que a corrupção desfruta no Brasil.
Devemos ao sociólogo Alberto Almeida, autor de A cabeça do brasileiro, a comprovação sistemática e quantificada dos insights antropológicos qualitativos de Roberto DaMatta (Você sabe com quem está falando?…, carro-chefe da coletânea Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro, que está completando 30 anos) e da ex-aluna deste, Lívia Barbosa (autora de O jeitinho brasileiro). Para resumir: quando uma bandalha qualquer é cometida num nível muito distante da realidade do cidadão comum, este não tem a menor dificuldade em rotulá-la de corrupção. Exemplo: o deputado, ou o seu chefe de gabinete, vende passagens aéreas fornecidas pela Câmara a uma agência de turismo picareta; ou o senador racha com o prefeito a verba resultante de emenda orçamentária para alguma obra no município. Já quando aquele mesmo cidadão, digamos, pede à parenta que trabalha na secretaria da escola pública que arranje uma vaga para o filho passando-o na frente do pai ou da mãe que passou dias e noites na fila de espera, aí trata-se de um simples favor ou de um simpático jeitinho.
Ora, a diferença entre esses comportamentos é muito mais de grau do que propriamente de natureza. Em ambos os casos, como bem lembra o professor Almeida, uma regra foi quebrada. E, se as autoridades continuarem a insistir em inventar novas leis, cada vez mais abrangentes e pormenorizadas, para combater costumes arraigados há séculos, estarão tão-somente incentivando a criatividade transgressora dos malandros de sempre. Daqui a dez, vinte anos, o Congresso em Foco descobrirá desmandos ainda mais graves em quantidades ainda maiores, e o que é pior: cada vez menos capazes de despertar a indignação de uma cidadania anestesiada.
Por que não aproveitar as revelações de agora para encarar o Congresso Nacional menos como uma casa de horrores indescritíveis, além da imaginação das pessoas comuns, e mais como um espelho da nossa (auto)complacência e da hipocrisia que nos faz diferenciar radicalmente a corrupção deles do jeitinho nosso de cada dia?