Um artigo (ótimo e dum cinismo encantador) repassado pelo coletivo Vila Vudu (com o perdão do inevitável trocadilho do título), assinado por Kevin Carson em Counterpunch diz que, em tempos de falsos cognatos (sem contar a crise epistemológica, aliás parte da tal batalha discursiva neo-pós-conservadora que assola o planeta), surge, impertérrito, o segurancês – um neologismo que, diga-se, não só não segura porra nenhuma, como tampouco se sustenta.
Quem lê os pronunciamentos da comunidade de “segurança nacional” dos EUA é sempre assaltado por uma dúvida que não quer calar: será que estão falando do mundo todo (including us, do Third World), ou do outro (The First) – o mundo deles?
A coisa só começa a fazer sentido quando se assume que o “Estado de Vigilância e Controle” – chamado conspicuamente de “Estado de Segurança” – tem idioma próprio, o tal segurancês. Como a Novilíngua, um inglês ideologicamente reformatado que substitui o idioma corrente no romance 1984 de Orwell, o segurancês é também usado para obliterar e apagar qualquer informação verdadeira.
Por exemplo, consideremos as declarações do embaixador Jaime Daremblum, diretor do Centro de Estudos Latino-americanos do Instituto Hudson, dadas à Comissão de Relações Externas do Senado dos EUA em 2010: Daremblum, depois de elogiar os senadores Lugar e Dodd pelos esforços feitos durante muitos anos na promoção da “segurança nacional e da democracia na América Latina”, alertou para os perigos do “populismo radical que se enraizou na Venezuela, Bolívia, Equador e Nicarágua.”
Ele ressalta que ainda mais alarmante é a aliança feita pelo presidente Hugo Chávez com o Irã – “principal patrocinador do terrorismo em todo o mundo.” Outro fato “alarmante”: o governo da Nicarágua “voltou às velhas táticas”, ocupando uma ilha fluvial da Costa Rica, em claro desrespeito ao que ordena a Organização dos Estados Americanos – OEA (cruzes). Aliás, a aliança entre Chávez e o Irã é o horror dos horrores! De longe, “a maior ameaça à estabilidade hemisférica desde a Guerra Fria”.
Perguntinha idiota: alarmante para quem, cara pálida? Resposta elementar: naturalmente para os interesses da segurança deles, dos EUA, não só The First, como The One World para todos os efeitos.
Para começar, em segurancês, “democracia” não significa aquilo que costuma significar seja em português, grego, bolivariano, espanhol, árabe, pashtun, farsi, aimará, tupi et alli. Você, muito provavelmente, entende que “democracia” significa “regime no qual pessoas comuns têm meios para controlar os processos pelos quais se tomam decisões que afetam a vida delas, isto é, de toda a população”.
Aqui o engano é ledo.
Porque em segurancês há um falso cognato de que “democracia” não significa necessariamente “democracia”, percebem? Esse falso cognato, que só existe em segurancês, designa uma sociedade na qual o sistema de poder aparece sempre travestido, mascarado, obliterado em rituais denominados “eleições periódicas”.
E em tais eleições periódicas, as pessoas escolhem entre candidatos aparentemente mui diferentes, mas que, na realidade, são farinha do mesmo saco, isto é, da mesma laia do grupo governante que, consequentemente, nunca muda. Os candidatos discutem um bocado, mas apenas questões secundárias – de somenos – ou seja, 20% delas. O “resto”, constituído por 80%, abrangendo as questões-chave, básicas, essenciais – como, por exemplo, os fundamentos do próprio sistema capitalista – jamais aparecem nos debates eleitorais.
Quando a própria estrutura do poder surge nas discussões – tipo quando o povo começa a questionar a propriedade da terra, concentrada na mão de pouquíssimos eleitos, latifundiários & proprietários (& todos de frente para o mar); ou a política de desenvolvimento orientada unicamente para a exportação – , surgem sinais de que a “democracia” está sob risco, razão pela qual é trocada por “populismo radical”.
Aí é caso de se aplicar a “democracia” por seus legítimos (e únicos) especialistas,
a saber: a CIA, os Marines, ou boths. Importante é que, em segurancês, “democracia” significa “proteger a estrutura de poder favorável aos EUA em qualquer ponto do planeta, mas dando às pessoas a ilusão de que, pelo fato de votarem em eleições periódicas, estariam escolhendo entre projetos diferentes.”
Ou seja, fora do capitalismo ianque não há salvação. E sem essa de “Outros Mundos Possíveis” & outras babaquices.
Deve-se também ter em mente que, em segurancês, o rótulo “estado patrocinador do terrorismo”, nunca, jamais, em hipótese alguma, pode aparecer associado aos EUA, os “good guys” Por essa razão, ações ou operações da Superpotência Dominante para “promover a democracia”, nunca, jamais, em hipótese alguma, serão “ações terroristas”. Mas ações que promovam “populismo radical”, essas sim, são à imagem e semelhança do “terror”, ergo objeto da “justiça infinita dos EUA” – no iluminadíssimo mote de George W.Bush.
Com o acorre também em Novilíngua, ações consideradas elogiáveis se praticadas por uns, passam a ser repreensíveis se praticadas por outros. Por exemplo: a ação da Nicarágua, que ocupou território da Costa Rica e desrespeitou a resolução da OEA, é repreensível, contudo a ação praticada pelos EUA – que também desrespeitou a resolução da OEA – tipo quando estes minaram o porto de Manágua sob o pretexto de para combater “populistas radicais” há 30 anos, é elogiável.
Parece que só se fala em Guerra Fria para lembrar as ações que detonaram a estabilidade hemisférica promovidas, patrocinadas ou executadas pelos EUA durante e imediatamente após essa época. Afinal, os EUA derrubaram o governo democrático (“mudança de regime”, como se diz em segurancês) da Guatemala em 1954 e instalaram ali um regime militar que aterrorizou o país durante décadas. Os EUA apoiaram esquadrões da morte na América Central, matando centenas de milhares de pessoas. Nos anos 60, exterminaram todos os membros da Teologia da Libertação em São Salvador e adjacências caribenhas. Sob o governo Monroe, reinstalaram a escravidão no Haiti.
Em 1973, depuseram e assassinaram Allende e seu governo social-progressista no Chile. Sem falar da Operação Condor, de Kissinger, nos anos 70, nem da implantação das demais ditaduras militares na AL – ou “mudança de regime” – a começar pelo golpe que depôs o governo democrático no Brasil nos anos 60. Mas tudo isto é de somenos.
Quando os EUA derrubam governos democráticos, um após o outro, como dominós, para instalar no poder ditadores pró-EUA em todo o hemisfério, tal ação significa “proteger a estabilidade”, não mandá-la para a casa do caralho, como de fato é mesmo. E sempre com o objetivo de derrotar o tal “populismo radical” que, em bom segurancês, se traduz por “ameaça à estabilidade”.
Também em segurancês, dizer que uma aliança entre Venezuela e Irã é “ameaça” não significa que “alguém esteja pensando em atacar e invadir território dos EUA”. Significa apenas que tais países se preparam para defender-se no caso dum ataque direto dos EUA, e que, nessas condições, talvez os EUA não consigam derrubar seus (deles) governos democráticos. Afinal, as “quarteladas” e a imposição de ditadores atualmente já não são possíveis.
Portanto, “ameaças” aparecem quando começa a surgir a possibilidade do governo da Venezuela expropriar latifúndios e redistribuir terras entre os colonos locais.
É “ameaça”, afinal, porque algumas economias começam a tentar atender primordialmente as necessidades e carências do próprio povo, deixando os interesses das corporações americanas em segundo plano.
A expressão “segurança nacional” também é interessante, porque não significa, em segurancês, “segurança para o povo da nação norte-americana”. Significa, isso sim, “segurança para os EUA e a coligação de forças que o controla contra os civis norte-americanos”. Nesse sentido, qualquer populismo econômico local é “grave ameaça à segurança nacional dos EUA”.
Segurança, diga-se de passagem, hoje totalmente privatizada, bem como hospitais, aeroportos, polícias, corpo de bombeiros, escolas, correios, companhias aéreas, etc.etc.etc. Hoje, os EUA constituem um estado literalmente “oco”, de propriedade exclusiva de suas (dele) corporações. Aos incrédulos, recomendo a leitura de Naomi Klein, A doutrina do Choque – as ascensão do capitalismo de desastre (Rio, Nova Fronteira, 2008). Esgota o assunto.
Elites econômicas nos EUA são o coração (e o coldre) de um dos lados que lutam hoje em todo o mundo: os proprietários do mundo versus aqueles sem cujo sangue e suor não haveria mundo. Quando um servidor do estado dos EUA, como Daremblum, usa o segurancês para falar de “ameaça à segurança nacional”, seu discurso tem de ser traduzido como “ameaça à estabilidade dos proprietários do hemisfério, dos que precisam de estabilidade para continuar a extrair sangue e suor dos não proprietários, isto é, o nosso sangue.”
Trocando em miúdos: vampirismo econômico tem mágoa.